quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Pássaro Morto

Um dia as asas do pássaro cansaram. Dissiparam-se no céu, confundindo-se ao azul do firmamento. O pássaro azul esmaeceu e se tornou um diminuto pombinho acinzentado. Deixou de ser sonho, jamais de ser sonhado; naqueles últimos tempos, não era suficiente vencer as tempestades de asas abertas. Desistiu de voar, saltitando numa apatia calculada entre os galhos mais rasteiros. Sob o brilho das estrelas, as suas penas refulgiam numa decadência esbranquiçada; não mais espelhavam constelações, nem dividiam a densidade do universo—os olhos da menina eram a luz e a luz já não interessava. O pássaro azul fenecia numa resignação inexorável. A escuridão das noites nubladas passou a ser seu habitat. Carregar o sol das manhãs era-lhe um fardo pesado demais, nobre demais para as asas delicadas de um passante sem ninho. Ser uma criatura de trevas lhe apetecia.
Então metamorfoseou-se novamente; de novo o homem-fantasma das horas incertas, observando-a remexer-se nas cobertas, oprimindo as paredes do quarto sempre branco dela, secando as investidas dela de sair do aposento, segurando-lhe os cílios com as pontas dos dedos quando ela desistia de dormir após ter visto o seu vulto de relance. Seria sempre um relance sem substância, uma embarcação sem porto, um pássaro sem ninho, e tentava convencê-la disso. A menina não podia fita-lo por muito tempo; ele jamais suportaria a luz opressora novamente. Mas gostava de assombrá-la, era importante: perseguia um sentido no qual não seria capaz de acreditar, ela sim. O pássaro azul virou fantasma e lenda, e a menina acreditava nos dois.
A porta do quarto estava aberta agora. Quando o pássaro azul se tornara um homem e a possuíra, ele destroçara a madeira velha com poucos esforços. A cabeça dela virando-se na sua direção, e o estabelecimento da sua forma corpórea: só ela era capaz de dar matéria à sua natureza inconsistente. Abarcara o peso do mundo, mas perdeu o poder de carregar o sol no seu vôo. E o pássaro precisava voar, voar sem retornos, sem voltas, e ela era toda uma coisa longa e fixa, pintando as paredes do quarto vazio, enchendo-o de coisas bonitas, e tecia tapetes dos cabelos dele, perfumes das suas lágrimas, músicas dos seus gemidos. Algo nela o fazia cantar, reverberando na acústica do quarto fechado, o quarto seguro, a porta aberta. E no entanto a ânsia do vazio lhe chamava, a ele, que se achava dono do céu, mas que era seu escravo. Foi-se escapando de si mesmo, evaporando pelas feridas, esvaziando-se pelos olhos, orelhas, lábios. Tornou-se névoa, quimera, fantasma. Um pedaço de passado que permanece, eterno, na intocabilidade. A assombração da vida dela, que perdeu um pouco da luz das estrelas. Estrelas que achava lhe pertencerem, mas de quem era escrava.

Hoje ele escoa entre a porta aberta e a cama dela, tirando as pontas dos dedos dos cílios dela quando ela se fecha num dilúvio abafado. Então adquire estatura, projetando sobre ela uma sombra de trevas. Acaba ninando-a sem querer, bem a tempo de não crescer além do quarto. E como um pássaro sem ninho, está condenado à imaterialidade do plasma, incapaz de sair apesar da porta aberta. Tanto quanto ela. 

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Sonho

A palavra não basta. A sua materialidade preta sobre branco atravessa, perfura, esvai-se também. Carne e osso, um corpo limitado pela carne e pelo osso, e meus dedos são agulhas de carne também, e são efêmeras, e atravessam. Nada que é eterno se retem à carne; a carne é verme, é pó, podridão fúnebre, química previsível. Nada que é eterno é sequer remotamente ligado ao tempo. A eternidade é uma coisa. O tempo, outra. O tempo é matéria e névoa, um híbrido egoísta: o corpo é o presente, e o passado e o futuro são massas amorfas de energia inútil, como o são, na humanidade, os sonhos e o pensamento. Tudo que não é físico se perde no tempo. É expelido pelo organismo como matéria fecal. Os tolos que se prendem aos vapores do invisível são como drogados irrecuperáveis, cuja lâmina da praticidade ainda não lhes cortou as lágrimas. Meus sonhos são etéreos. Eu jamais posso alcançá-los. Quanto mais perto chego, até o contato final, mais rápido é o fim; atravesso-os. Os sonhos são etéreos, mas eu sou material. Quero esfacelar a minha carne e virar uma outra coisa.
Quero ir para o lado das coisas sonhadas, e por isso eu não posso existir. Os sonhos são como tumores malignos, porque não têm utilidade. Não deveriam estar ali, mas crescem, espremendo-se entre os órgãos vitais, atrapalhando o movimento do corpo, que é por si só uma coisa prática e não mais do que isso. O etéreo vira vento insalubre, congelando as minhas orelhas. Atravessando, atravessando, atravessando, sem nunca ficar. 
Eu sonhei contigo por muitos anos. Mas se te sentires desrespeitado, não te culparei a ofensa. Tu és alguém, sujeito compacto e definido, bem preso aos teus ossos e seguro sobre os pés. Tu atravessas o etéreo e não pode ser sonhado; copiei uma versão de ti mais imperfeita, mais amada, mais bonita. É o paradoxo final: eu sonho com a tua cópia mentirosa e mesquinha. Roubei tua imagem, como uma xerox criminosa, e a violei. Já não é mais contigo que sonho, nem és tu meu amor. É ele, mas eu não posso alcançá-lo.
Traí-te.
Traí-me.
Fico com os fiapos. Aprecio-os, santifico-os. Beijo os lábios da minha Annabell Lee, enquanto ela ainda é um sonho visível fora do tempo. Annabell Lee, uma lembrança terna; que se perde e se esvai no presente, na carne, pois da carne só sobrou o pó, e é apenas a carne que conta, que existe no corpo. Annabell Lee, que está apenas morta; Annabell Lee, que é raramente lembrada, como, afinal, toda memória.

Doença



Peguei a tesoura com o fogo que se pega uma faca; não a olhei. Quanta ingenuidade a minha, na sensação de possuir naquela lâmina uma arma! Quanta ingenuidade a minha, ignóbil e desfocada no canto, carne viva e pulsante, músculos retesados de tensão, pele gelada de suor, e o odor do corpo elevando-se na sua humanidade desagradável. Era a arma que tinha, a pequena e insensata tesoura. Apenas o que me restara, pois eu mesma era o mofo que sobrara de um apocalipse ignorado. Já nascera desprovida de um sonho que nunca soube sonhar, esquecida da memória que já não importava, mas que era esquecida por ainda estar lá, escondida sobre uma barreira de cinzas e destroços orgânicos e etéreos de toda espécie. Não nascera completa como todos os outros; tinha algo a mais que me era fúnebre, algo a mais que  me fazia falta, algo a mais como um membro fantasma que sentimos tocar mesmo quando a carne já foi arrancada. Encaixei as reentrâncias nos dedos, puxando o gatilho imaginário. Esperava cortar o anexo, por mais que não o visse, por mais que não soubesse por onde deslizar a lâmina; cortaria muitas outras coisas no caminho. Comecei pelo cabelo. Mechas enroscaram-se nos dedos e então caíram, lânguidas, sobre o chão. Sobre o porcelanato gelado, fios se desencontraram, como moscas perdidas, espalhando-se, revoando.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Ausência


            Eu me sinto vazia.
            Vazia, não. Esvaziada. Esvaziada de tudo que é doce e bonito, exaurida de tudo que é vivo e alegre, desprovida de todas as cores, monótona e preto e branco. Há pouco, a luz me fazia enxergar minhas penas negras, escuras como a noite—tão escuras que acabavam despontando num matiz azulado, na clareza do dia, no vislumbre queimado do turquesa do crepúsculo. Agora, elas voltaram a ser o produto esturricado de minhas aventuras ensolaradas, como se mais uma vez eu me visse incapaz de caminhar fora das sombras. Não brilham em absoluto, e não se transmutam nas brumas morosas da manhã. São carvão despedaçado, cinza perdida em meio ao cinza. Meu mundo monocromático de vazio e trevas padeceu sob meus pés novamente, puxando minhas asas pesadas.
            Eu não sei voar. Eu voei tão alto, e não foi suficiente.
            Sob este filtro sem cor ou ror, nós somos mais uma vez parecidos. Estamos mergulhados na melancolia, encharcados até a cabeça deste líquido pegajoso que nos puxa para baixo, que afoga nossas asas. Encobertos de piche e trevas, ambos negros e insignificantes, obtusos e cegos. Quanto da imensidão azul, a imensidão azul do horizonte e tua, quanto dela sobrou? Aqui, tudo é pequeneza e negrume, e não há nada que ainda te sejas. Ah, pássaro azul, pra onde tu voaste, já que não estás mais aqui? Não há ninguém ao meu lado, e não há voz que me cante.
            O silêncio me oprime. Eu não posso ouvir mais nada. A ausência de som e a ausência de tudo me violam e matam, e não há ar para respirar. Como eu poderia voar, se já não há o céu das manhãs, se não há espaço para qualquer direção? Eu sempre estive perdida, porque nunca houve nada para achar.
            Eu me sinto vazia. A correnteza de trevas levou meus sonhos e meus sorrisos, e também minhas asas. E eu só consigo aumenta-la, afogando-me em minhas próprias lágrimas, escura e opaca e pequena, tão pequena e só.  

sábado, 6 de julho de 2013

Relance

             Vi-a de relance. Do jeito que eu veria sempre a partir de então; vi-a de relance num banco de um ônibus, deslizando seus grandes olhos pela janela de trás, pétrea e banal em seu perfil de camafeu esquecido. Vi, e foi um susto. Todos aqueles anos a haviam recoberto de uma camada de mofo muito sutil, desfazendo-se toda vez que pensava em nossa antiga amizade, jamais se esverdeando no mofo irreversível das relações mortas e fugidias. Mas há muito não a via assim, material. Ela era um dos retratos fulgurantes da minha sala secreta, um dos fantasmas queridos da minha mente insone. E, no entanto, lá estavam seus olhos graúdos, impenetráveis e escuríssimos, com aquelas trevas profundas que ela usava para esconder a si mesma tão bem.
            Ela não me viu. Permaneci sentada num dos bancos da frente, observando-a numa indiscrição íntima. Onde quer que ela estivesse, era passado; o que quer que ela fitasse, inclinando o pescoço pálido sobre os quilômetros sujos do asfalto, ficara para trás assim como ela mesma. Era toda vintage, como uma boneca de porcelana riponga. A mão de dedos longos demais segurava uma bolsa de palha, como se estivesse pronta para colher flores em algum campo com sua cesta espaçosa. Perscrutei sua concentração apática. Ela não parecia sequer respirar sob a imagem da janela. E peguei-me pensando em nosso passado, nossos segredos compartilhados, nossas estranhezas identificando-se numa amargura melódica, e tudo o que já fora superado pelo tempo e pelo futuro, pela distância e pelo silêncio. Será que ela também se perdera? Embolara-se no limbo embolorado no qual eu mesma me encontrava? Será que seus olhos gigantes também haviam se tornado turvos, incapazes de enxergar o que estava a frente, paralisados no que era palpável e pungente, numa miopia temporal? Ou ainda, eu me perdera no seu passado como ela se perdera no meu?
          E vi que eu e ela ainda éramos iguais. Onde quer que estivéssemos, estávamos perdidas no que ficara para trás. Como dois fantasmas condenados a observar, plácidos, os quilômetros consumindo-se sob os pneus.

Éramos apenas um relance para o mundo. 

quinta-feira, 13 de junho de 2013

As Mil Gaiolas




            Percebi que eu não sei ser eu mesma. Veja bem, não é como se eu não soubesse exatamente o que sou; mas sabendo, apenas intuitivamente, desse o quê, a totalidade do seu funcionamento ou dos seus objetivos ainda me é uma completa incógnita. Ainda, não. Subitamente. Eu talvez já tenha sido uma melhor conhecedora de mim mesma, ou pelo menos estar alheia à minha própria ignorância tenha me mantido na ordenada placidez de um conforto. E usava de tal privilégio com certa arrogância, escrevendo metáforas engaioladas como o mais profundo pesquisador de si mesmo. Ainda há pouco, uma dessas gaiolas caiu ao chão e eu, pássaro fúnebre e desolado, orgulhoso de minha melancolia poética, voei por prados não tão distantes, procurando pela voz de um amor. Mas hoje vejo que, tendo o encontrado, não percebi o complexo férreo no qual minhas asas estiveram envoltas desde sempre. A minha gaiola encontra-se emparedada numa profusão de outras mil, jogadas desordenadamente uma em cima da outra, como ferro velho, dentro de uma grande e majestosa gaiola principal. Debaixo de todas elas, esmagadas por um peso lancinante, minhas asas tremem e falham, e eu choro copiosamente enquanto tento, numa delicadeza torturante, retirar, pena por pena, cada um dos meus pedaços. E acabo descobrindo que eu mesma sou uma gaiola, e que dentro de mim há ainda mais gaiolas. O meu mundo é coberto por arames farpados e lúgubres cadeados, e eu nunca havia percebido meu próprio presídio fatal.
            Como pude ser tão cega? Há tantas correntes separando-me de mim mesma, que eu não posso ter sido, algum dia, capaz de enxergar meu apático vulto. Caminhei exaustivamente pelos prados que não eram meus; lavrei incessantemente a terra que nunca me pertenceu. Afundei-me na lama a léguas de meus domínios; e deitei-me nas camas de outras cabeças. Minha miopia impediu-me de vislumbrar o que não estava a centímetros de meu nariz, e eu tive de me afastar demais para perdê-la. Será que precisei tornar-me o oposto de mim mesma para saber quem sou? Como um reflexo no espelho, uma imagem real e invertida, e ainda assim o único reflexo, a única visão, a única maneira de olhar para mim mesma através de meus próprios olhos. Enfrentei os monstros de minhas masmorras, mas enganei-me ao pensar que eles estavam mortos, decrépitos e decompostos em suas jaulas reluzentes das trevas do meu eu. Hoje mesmo, um deles despertou.

domingo, 26 de maio de 2013

Apenas um fantasma



            Ela é apenas um fantasma agora.
            Repito isso para mim mesma, escrevendo-o num papel. Leio, e uma voz imaginária, de segurança e convicção assombrosas, profere cada uma das palavras com sua clareza de telemarketing. Ela é apenas um fantasma agora. Daqueles quietos e resignados, que não tiveram interesse sequer de permanecer sob o mesmo teto que eu, muito calada e superior em suas aparições esporádicas, quando eu declamo minhas reclamações tardias e não recebo qualquer reação. Ela é apenas um fantasma agora, uma névoa tênue e esmirrada, tão pequena quanto era em vida, mas profundamente mais distante. Deveria aproveitar essas visitas inconvenientes e exorcizá-la de vez; e no entanto ela não ficaria por tempo suficiente nem sequer para isso, não suportaria minha materialidade fria de humana pulsante. Atravessou as barreiras etéreas sem qualquer motivo, não um que não estivesse selado num recanto muito obscuro de sua própria psique infantil. E eu nunca compreendi esse segredo, ou talvez, quando uma vez o ouvi sussurrado no meu ouvido, tenha preferido relega-lo ao esquecimento, do jeito que deveria ter feito com ela. Já vi tantos fantasmas, tantas partidas; mas há algo de fascinante e pungente na ida dela, algo que eu jamais saberei por completo ou considerarei deste mundo. E aí também há problema: exatamente por isso fomos separadas em esferas diferentes. Por mais que em algum momento eu tenha chegado a acreditar, na minha maternidade ilusória, que estivéssemos lado a lado.
            Ela não passa de uma alma errante, de um espectro borrado do que um dia eu pensei ser meu. Tinha a impressão de enxergar a mim mesma em seus repentes pueris, sua fragilidade nervosa, sua surpresa e fé e um não sei o que de contos de fadas, daqueles que acabam com uma princesa sozinha. Gritei insultos aos ventos, esperando que seus dragões em pele de cordeiro se revelassem; e consegui livrá-la de um ou outro, até que ela arranjasse algo para completar a estória. Mas ela escreveu o resto sem mim. E continuo a vendo em tantos lugares, mas tenho certeza que ela não me vê em nenhum.
            Talvez eu sinta falta de tudo ao redor dela, mas de seu vulto translúcido, essa coisa que me assombra em sumiço, não tenho mais tanta certeza. Pois às vezes creio que ela, em sua magia fúnebre, tenha roubado um pedaço de mim apenas para que eu vivesse sem ele. Seu rosto rachado de boneca de louça não guarda nenhum segredo puro para mim; ela tem sangue em suas mãos, por mais que pense que só as pessoas de carne e osso possam fazê-lo. E talvez tenha mais que nas minhas, com toda minha nefasta manipulação volúvel.
            Faço-lhe uma prece, uma lamúria silente na noite. Pois àquela que nunca compreendeu o amor, o mais verdadeiro parecerá uma infâmia. E ela é apenas um fantasma agora.