Um
dia as asas do pássaro cansaram. Dissiparam-se no céu, confundindo-se ao azul do
firmamento. O pássaro azul esmaeceu e se tornou um diminuto pombinho
acinzentado. Deixou de ser sonho, jamais de ser sonhado; naqueles últimos
tempos, não era suficiente vencer as tempestades de asas abertas. Desistiu de
voar, saltitando numa apatia calculada entre os galhos mais rasteiros. Sob o
brilho das estrelas, as suas penas refulgiam numa decadência esbranquiçada; não
mais espelhavam constelações, nem dividiam a densidade do universo—os olhos da
menina eram a luz e a luz já não interessava. O pássaro azul fenecia numa
resignação inexorável. A escuridão das noites nubladas passou a ser seu
habitat. Carregar o sol das manhãs era-lhe um fardo pesado demais, nobre demais
para as asas delicadas de um passante sem ninho. Ser uma criatura de trevas lhe
apetecia.
Então
metamorfoseou-se novamente; de novo o homem-fantasma das horas incertas,
observando-a remexer-se nas cobertas, oprimindo as paredes do quarto sempre
branco dela, secando as investidas dela de sair do aposento, segurando-lhe os
cílios com as pontas dos dedos quando ela desistia de dormir após ter visto o
seu vulto de relance. Seria sempre um relance sem substância, uma embarcação
sem porto, um pássaro sem ninho, e tentava convencê-la disso. A menina não
podia fita-lo por muito tempo; ele jamais suportaria a luz opressora novamente.
Mas gostava de assombrá-la, era importante: perseguia um sentido no qual não
seria capaz de acreditar, ela sim. O pássaro azul virou fantasma e lenda, e a
menina acreditava nos dois.
A
porta do quarto estava aberta agora. Quando o pássaro azul se tornara um homem
e a possuíra, ele destroçara a madeira velha com poucos esforços. A cabeça dela
virando-se na sua direção, e o estabelecimento da sua forma corpórea: só ela
era capaz de dar matéria à sua natureza inconsistente. Abarcara o peso do
mundo, mas perdeu o poder de carregar o sol no seu vôo. E o pássaro precisava
voar, voar sem retornos, sem voltas, e ela era toda uma coisa longa e fixa,
pintando as paredes do quarto vazio, enchendo-o de coisas bonitas, e tecia
tapetes dos cabelos dele, perfumes das suas lágrimas, músicas dos seus gemidos.
Algo nela o fazia cantar, reverberando na acústica do quarto fechado, o quarto
seguro, a porta aberta. E no entanto a ânsia do vazio lhe chamava, a ele, que
se achava dono do céu, mas que era seu escravo. Foi-se escapando de si mesmo,
evaporando pelas feridas, esvaziando-se pelos olhos, orelhas, lábios. Tornou-se
névoa, quimera, fantasma. Um pedaço de passado que permanece, eterno, na
intocabilidade. A assombração da vida dela, que perdeu um pouco da luz das
estrelas. Estrelas que achava lhe pertencerem, mas de quem era escrava.
Hoje
ele escoa entre a porta aberta e a cama dela, tirando as pontas dos dedos dos
cílios dela quando ela se fecha num dilúvio abafado. Então adquire estatura,
projetando sobre ela uma sombra de trevas. Acaba ninando-a sem querer, bem a
tempo de não crescer além do quarto. E como um pássaro sem ninho, está
condenado à imaterialidade do plasma, incapaz de sair apesar da porta aberta. Tanto
quanto ela.