segunda-feira, 6 de junho de 2011

Perfil

-->
Sempre imaginei que escrever sobre mim fosse fácil. Que me definir, explorando meus detalhes mais marcantes e pessoais, fosse como escrever mais um de meus textos exageradamente emocionais, densos e sinceros, onde eu tantas vezes imprimi tanto da minha personalidade. Mas percebo que, quando os escrevia, estava, na maioria das vezes, ou até mesmo em todas, disfarçada debaixo da couraça de um outro ser, de outro personagem, que por metáfora se assemelhava a mim, tomando toda a minha essência. Já fui um corvo, sombrio e engaiolado; já fui uma boneca—a mais peculiar das bonecas—frágil e ornamental em seu canto, podendo quebrar-se a qualquer momento, mas sabendo que seu interior não era oco e que havia esperança; já fui esta mesma boneca quebrada selando-se num castelo feito com suas ilusões; já fui a última humana em frente a uma sociedade de máquinas geladas. É lógico que, desconsiderando o excesso de imaginação e fantasia, todos esses personagens provam algo muito distinto, e passam uma sensação notável de isolamento e exclusão. E talvez eu me sinta mesmo isolada, e há todos os anos de colégio para provarem que eu o fui, e, o sendo, habituei-me a apreciar isso.
          Num certo dia, me distraio durante uma aula, que se passa numa sala com janelas. As nuvens me chamam a atenção, vedando a luz do sol em suas pesadas curvas acinzentadas, carregadas da água que cairá em breve. O vidro é coberto por uma película escura, tornando o ambiente mais agradável em dias muito ensolarados. Eu aprecio a escuridão que as nuvens e a janela me proporcionam, começando, então, uma série de reflexões sobre o contraste. Como alguém que encontra muitas dificuldades em habituar-se ao próprio século em que nasceu, sonhando com o passado, o apogeu do romantismo e a literatura que teria realizado nessa época, eu gosto de me personificar como um ser sombrio e melancólico, um ser basicamente diferente, e, por isso, um ser das trevas. As trevas escondem aquilo que não está no centro, que é preciso olhar-se com mais cuidado para avistar; aquilo que é diferente e não vive apenas no mundo das coisas óbvias e palpáveis. Sendo assim, eu traço uma relação direta e irônica de meu astigmatismo—possuidores dessa doença ocular têm, basicamente, maior sensibilidade à luz, encontrando-se mais confortáveis no escuro e mais vulneráveis à luminosidade—com essa densidade, essa diferença que eu acredito tão grande e que me faz destoar de tudo e todos, ora por isso realmente acontecer, ora por minha própria cabeça, que é exagerada e imaginativa demais. E, se esse paralelo não serve de muita coisa para me descrever, ao menos mostra essa minha inclinação acentuada para a literatura, mesmo que de outra época. E, longe de querer gerar incompreensões, eu pretendo não parecer uma espécie de anti-social aguda, embora, em todas as minhas tentativas de me caracterizar, eu sempre acabe me assemelhando a uma pessoa muito estranha e peculiar. De qualquer maneira, não posso dizer que não gosto disso. De sentir-me diferente e solitária, mas encontrando em cada um que eu amo o valor de 100 que não puderam me entender.
          Fui criada com todos os problemas e caprichos que uma filha única normalmente possui: excessivamente protegida, devidamente mimada, sem irmãos ou família para acompanhar minhas idéias infantis. Desde cedo, devorei os livros que pude, e antes de poder lê-los, incomodava minha mãe freqüentemente, uma folha de papel em minhas mãos, e um conjunto de letras que eu já vira casualmente agrupadas em núcleos separados, tentando formar palavras por pura sorte. Lembro de surpreender-me com as outras crianças, quando estas liam redações na escola. As repetições me incomodavam e pareciam obviamente erradas para mim, quando nem sequer minha professora da primeira série se incomodava com elas. Eu praticava todos os dias, tentando ler textos sem deformá-los numa velocidade cada vez maior, e muitas vezes confundindo as pobres pessoas que tinham de me ouvir fazendo isso. À medida que crescia, outros interesses foram surgindo, e eu desenvolvi outras capacidades, como desenhar. Logo esses desenhos se tornaram meras ilustrações das histórias que surgiam na minha cabeça, e, ao ler as grandes obras inglesas do romantismo, eu soube, definitivamente, que a literatura estaria para sempre na minha vida, e, com sorte, produzida pelas minhas mãos.
          E todo o isolamento que eu descrevi antes, além de gerar uma misantropia mais ou menos casual e uma insegurança disfarçada, acaba auxiliando meus instintos criativos, me transportando, em sua solidão, para o mundo alternativo onde eu escrevo os caminhos e invento os refúgios. E nele permanecerei, não importa quantos anos eu complete, deixando toda a minha amargura em relação à minha época no plano do real, e transferindo mesmo esse plano para meus escritos, confortável no escuro onde meus olhos sensíveis possam observar sem doer.