sábado, 6 de julho de 2013

Relance

             Vi-a de relance. Do jeito que eu veria sempre a partir de então; vi-a de relance num banco de um ônibus, deslizando seus grandes olhos pela janela de trás, pétrea e banal em seu perfil de camafeu esquecido. Vi, e foi um susto. Todos aqueles anos a haviam recoberto de uma camada de mofo muito sutil, desfazendo-se toda vez que pensava em nossa antiga amizade, jamais se esverdeando no mofo irreversível das relações mortas e fugidias. Mas há muito não a via assim, material. Ela era um dos retratos fulgurantes da minha sala secreta, um dos fantasmas queridos da minha mente insone. E, no entanto, lá estavam seus olhos graúdos, impenetráveis e escuríssimos, com aquelas trevas profundas que ela usava para esconder a si mesma tão bem.
            Ela não me viu. Permaneci sentada num dos bancos da frente, observando-a numa indiscrição íntima. Onde quer que ela estivesse, era passado; o que quer que ela fitasse, inclinando o pescoço pálido sobre os quilômetros sujos do asfalto, ficara para trás assim como ela mesma. Era toda vintage, como uma boneca de porcelana riponga. A mão de dedos longos demais segurava uma bolsa de palha, como se estivesse pronta para colher flores em algum campo com sua cesta espaçosa. Perscrutei sua concentração apática. Ela não parecia sequer respirar sob a imagem da janela. E peguei-me pensando em nosso passado, nossos segredos compartilhados, nossas estranhezas identificando-se numa amargura melódica, e tudo o que já fora superado pelo tempo e pelo futuro, pela distância e pelo silêncio. Será que ela também se perdera? Embolara-se no limbo embolorado no qual eu mesma me encontrava? Será que seus olhos gigantes também haviam se tornado turvos, incapazes de enxergar o que estava a frente, paralisados no que era palpável e pungente, numa miopia temporal? Ou ainda, eu me perdera no seu passado como ela se perdera no meu?
          E vi que eu e ela ainda éramos iguais. Onde quer que estivéssemos, estávamos perdidas no que ficara para trás. Como dois fantasmas condenados a observar, plácidos, os quilômetros consumindo-se sob os pneus.

Éramos apenas um relance para o mundo. 

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