Vi-a de relance. Do
jeito que eu veria sempre a partir de então; vi-a de relance num banco de um
ônibus, deslizando seus grandes olhos pela janela de trás, pétrea e banal em
seu perfil de camafeu esquecido. Vi, e foi um susto. Todos aqueles anos a
haviam recoberto de uma camada de mofo muito sutil, desfazendo-se toda vez que
pensava em nossa antiga amizade, jamais se esverdeando no mofo irreversível das
relações mortas e fugidias. Mas há muito não a via assim, material. Ela era um
dos retratos fulgurantes da minha sala secreta, um dos fantasmas queridos da
minha mente insone. E, no entanto, lá estavam seus olhos graúdos, impenetráveis
e escuríssimos, com aquelas trevas profundas que ela usava para esconder a si
mesma tão bem.
Ela não me viu. Permaneci sentada num dos bancos da
frente, observando-a numa indiscrição íntima. Onde quer que ela estivesse, era
passado; o que quer que ela fitasse, inclinando o pescoço pálido sobre os
quilômetros sujos do asfalto, ficara para trás assim como ela mesma. Era toda vintage, como uma boneca de porcelana
riponga. A mão de dedos longos demais segurava uma bolsa de palha, como se
estivesse pronta para colher flores em algum campo com sua cesta espaçosa.
Perscrutei sua concentração apática. Ela não parecia sequer respirar sob a
imagem da janela. E peguei-me pensando em nosso passado, nossos segredos
compartilhados, nossas estranhezas identificando-se numa amargura melódica, e
tudo o que já fora superado pelo tempo e pelo futuro, pela distância e pelo
silêncio. Será que ela também se perdera? Embolara-se no limbo embolorado no
qual eu mesma me encontrava? Será que seus olhos gigantes também haviam se
tornado turvos, incapazes de enxergar o que estava a frente, paralisados no que
era palpável e pungente, numa miopia temporal? Ou ainda, eu me perdera no seu
passado como ela se perdera no meu?
E vi que eu e ela ainda éramos iguais. Onde quer que
estivéssemos, estávamos perdidas no que ficara para trás. Como dois fantasmas
condenados a observar, plácidos, os quilômetros consumindo-se sob os pneus.
Éramos
apenas um relance para o mundo.
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