Percebi que eu não sei ser eu mesma. Veja bem, não é como
se eu não soubesse exatamente o que sou; mas sabendo, apenas intuitivamente,
desse o quê, a totalidade do seu funcionamento ou dos seus objetivos ainda me é
uma completa incógnita. Ainda, não. Subitamente. Eu talvez já tenha sido uma
melhor conhecedora de mim mesma, ou pelo menos estar alheia à minha própria
ignorância tenha me mantido na ordenada placidez de um conforto. E usava de tal
privilégio com certa arrogância, escrevendo metáforas engaioladas como o mais
profundo pesquisador de si mesmo. Ainda há pouco, uma dessas gaiolas caiu ao
chão e eu, pássaro fúnebre e desolado, orgulhoso de minha melancolia poética,
voei por prados não tão distantes, procurando pela voz de um amor. Mas hoje
vejo que, tendo o encontrado, não percebi o complexo férreo no qual minhas asas
estiveram envoltas desde sempre. A minha gaiola encontra-se emparedada numa profusão
de outras mil, jogadas desordenadamente uma em cima da outra, como ferro velho,
dentro de uma grande e majestosa gaiola principal. Debaixo de todas elas,
esmagadas por um peso lancinante, minhas asas tremem e falham, e eu choro
copiosamente enquanto tento, numa delicadeza torturante, retirar, pena por
pena, cada um dos meus pedaços. E acabo descobrindo que eu mesma sou uma
gaiola, e que dentro de mim há ainda mais gaiolas. O meu mundo é coberto por
arames farpados e lúgubres cadeados, e eu nunca havia percebido meu próprio
presídio fatal.
Como pude ser tão cega? Há tantas correntes separando-me
de mim mesma, que eu não posso ter sido, algum dia, capaz de enxergar meu
apático vulto. Caminhei exaustivamente pelos prados que não eram meus; lavrei
incessantemente a terra que nunca me pertenceu. Afundei-me na lama a léguas de
meus domínios; e deitei-me nas camas de outras cabeças. Minha miopia impediu-me
de vislumbrar o que não estava a centímetros de meu nariz, e eu tive de me
afastar demais para perdê-la. Será que precisei tornar-me o oposto de mim mesma
para saber quem sou? Como um reflexo no espelho, uma imagem real e invertida, e
ainda assim o único reflexo, a única visão, a única maneira de olhar para mim
mesma através de meus próprios olhos. Enfrentei os monstros de minhas
masmorras, mas enganei-me ao pensar que eles estavam mortos, decrépitos e
decompostos em suas jaulas reluzentes das trevas do meu eu. Hoje mesmo, um
deles despertou.
Era um gigante adormecido. Chegou a remexer-se algumas
vezes, sonâmbulo, mas há muito não levantava, sacudindo-me em seu rugido de
besta sedenta. Vi-o através de meus olhos, fustigando minhas pernas,
arrancando-me sangue e lágrimas com suas garras, quebrando meu sorriso de
dentes alvos, ferindo meus pés e arrastando-me para o chão, caída sobre as
chagas que, só então percebi, nunca haviam curado. Eu o prendera por tanto tempo,
deixando-o à míngua de sua própria fome, mas não fora suficiente, não fora e
não era. Ainda não é. E, como um aflito Dr. Jekyll, eu aceitei meu próprio Mr.
Hyde, assombrando-me com ele pelo resto do dia, como se, mesmo longe de minhas
poções, ele ainda fosse uma ameaça.
Mais cedo, havia encontrado uma chave que sempre estivera
por perto, pesada demais para minhas mãos frágeis. E surpreendi-me ao ver, logo
agora, abatida e confusa, que a suportava entre os dedos, e encaixei-a num dos
cadeados mais imponentes, feito de chumbo e pedra. E só a partir daí meu
monstro teve sorrisos para quebrar, pois antes disto eu não sorria, e era o
oposto de mim exatamente por ser ninguém.
Imaginei uma hipótese para que meu monstro surgisse. E
pensei que talvez ele fosse apenas um carrasco, revoltado com minha rebeldia de
fugitiva, e tomara conta de meu corpo para torturar-me, sussurrar palavras
duras em meus ouvidos, sugar toda a força extraordinária que surgira
misteriosamente para que eu aguentasse aquela chave. Caí, exausta. Mas ele se
foi, deixando um rastro de medo e prudência, preparando meus sentidos
latejantes para seu retorno.
E então eu fiz o inesperado. Eu cantei. Cantei no tom
mais alto, nas minhas mais inspiradas vibrações de soprano, sem me importar que
tantas correntes caíssem sobre mim ou fantasmas translúcidos se insinuassem
entre as sombras. Cantei e, como se ele nunca houvesse sido violado, recuperei
meu sorriso, e percebi que aquilo, aquele pequeno gesto, aqueles fugazes
minutos de som e alma haviam sido uma prática de mim mesma, e era daquele jeito
que eu deveria ser. Senti como se algo jorrasse para fora de meus pulmões,
aliviando-me, quase como se nas jaulas de minha própria respiração o espectro
de mim mesma tivesse arranhado minhas vísceras, reclamando sua liberdade em
desespero e fúria. E descobri que aquele era um pedaço de mim, e enquanto o
fizesse, estaria sendo um pouco eu, por mais que ainda houvesse tantos pedaços
para descobrir e penas para libertar, tantos cadeados para rebentar e monstros
para combater.
Mas eu estava sendo eu mesma. O máximo que eu podia.
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