As teias de aranha na janela não me assustam mais. O tempo se encarregou de deixa-las ali, frágeis e quebradiças, persistentes e invisíveis, discretas em sua própria magia que leva a todos os cantos. O tempo se encarregou de deixar meus ouvidos doloridos descansarem, e minhas tenras feridas são hoje apenas marcas sobre a pele desbotada, desenhos eternos enfeitando os braços que um dia se jogaram ao enlace do que era mais terno e mais ácido. O tempo me envolveu em suas bandagens pálidas, paralisando-me em meu curso acidentado, lavando meus pés ensanguentados e dissolvendo a dor em minhas lágrimas, e quantas, quantas lágrimas. O tempo afastou as ervas daninhas de meu palácio, empurrou-me para sua torre mais alta, convocou o silêncio e as aranhas e o nada para que eu tivesse companhia.
Mas
hoje a canção voltou a tocar. E diante do lúgubre som do piano eu lembrei da
sua imagem.
Pensei
que dividíamos a mesma coleção de bonecas quebradas, o mesmo palácio de ternas
assombrações. Mas as aranhas são as únicas aqui, caminhando sobre os pedaços de
louça no chão, examinando os fragmentos minúsculos que arranharam meus pés,
subindo e descendo e voltando, lépidas e constantes como são. Pensei que minha
boneca favorita fosse a testemunha mais compreensiva de meus próprios pecados,
que os cabelos que eu penteara com tanto empenho não fossem me abandonar em
minha gaiola, jogando-se na tal floresta com a qual eu jamais havia sonhado.
Comparava nossas palavras e desenhos, nossos turvos rascunhos de sonhos
estranhos demais, iguais demais, nossos demais. E enxergava nos seus olhos
vítreos de brinquedo novo o que eu mesma já fora um dia, e deixava que minhas
asas negras a envolvessem, protegendo-a do que pudesse arranhar sua porcelana
intacta.
Mas
o tempo a levou também. E eu jamais soube o porquê. Minhas correntes pesadas
demais ainda não haviam sido quebradas, e meu coração ainda sofria, extraído um
pedaço enorme dele, o maior dos amores e dos pecados. E logo então minha boneca
quebrara-se sobre o chão, arrastando-se para os espinhos e trevas da floresta,
deixando-me só e sem a canção.
E
eu jamais soube o porquê.