Lotado. Está
lotado aqui.
Lotado demais, e muito pouco também.
Há muito que excede e mais tanto que falta. Mal consigo mexer meus braços, e
meus passos se perdem e caem sobre o chão gelado. Tento estender minha mão, mas
não há ninguém para pegá-la. Quando porventura uma daquelas sombras consegue
tocar-me, quando seus dedos de éter se entrelaçam nos meus, elas zombam e
gritam e me envolvem com força, acalentando-me do frio invisível de suas
garras, jamais puxando-me para cima ou erguendo meus olhos, jamais acordando-me
com seus sussurros ensurdecedores. Mortas, elas roubam meu fôlego, tentando
reviver através de meu corpo, minhas veias, minhas forças em cativeiro. Estão
condenadas ao passado, mofadas e mortiças, mas permanecem presas às paredes, aos
móveis, a cada batida de um coração amaldiçoado pela memória. As memórias
minhas que se juntam às tuas; alguém me chama, mas eu não posso ouvir. Tu
entraste como amante, mas trouxe muitas delas. E como uma médium condenada,
fico a observar os fantasmas de outrora, e eles são tantos e tão reais, que
lotam o meu lado vazio da tua presença.
Os ponteiros do relógio travam e
calam-se. Resta-me esta casa que divido com as aranhas, restam-me suas teias
quebradiças e fatais. Houve um dia em que fui beijada, e, apesar de tantos
fantasmas, não me lembro tanto dele; não me lembro do momento em que senti algo
terrestre, não me lembro do momento em que estive no mundo físico. Não porque
estou morta; mas não seria isto a morte? Alguém me chama, alguém me toca. Mas
eu não posso sentir. Minha mente lotada de vozes sussurra os refrões de uma
canção desimportante, preenchendo meus ossos vazios de mofo, apodrecendo meu
corpo e minha juventude, levando-me a cantar com ela aquela melodia que não diz
mais nada, mas significa tanto. E no entanto minha garganta está seca, e tu já
foste embora há tempos. Criarei um fantasma para ti também, como aquele que já
ocupou tua ausência. E o colocarei ao meu lado, e, por ser um fantasma, ele não
terá nenhuma memória além da minha.
Não lembro mais do mover do relógio.
Há tanto tempo a poeira cobriu a cor de seus ponteiros, e uma aranha o tornou
sua casa; talvez as paredes estivessem muito cheias, lotadas de tantas outras
coisas esquecidas pelo mundo. Grudentas de teias, de memórias e almas, tantas
almas, que não sobrou nenhum espaço para a minha. E esqueço o que tanto
faltava, por mais que talvez a única coisa que não estivesse aqui fosse a
singela e deslocada presença de mim mesma.