quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Ausência


            Eu me sinto vazia.
            Vazia, não. Esvaziada. Esvaziada de tudo que é doce e bonito, exaurida de tudo que é vivo e alegre, desprovida de todas as cores, monótona e preto e branco. Há pouco, a luz me fazia enxergar minhas penas negras, escuras como a noite—tão escuras que acabavam despontando num matiz azulado, na clareza do dia, no vislumbre queimado do turquesa do crepúsculo. Agora, elas voltaram a ser o produto esturricado de minhas aventuras ensolaradas, como se mais uma vez eu me visse incapaz de caminhar fora das sombras. Não brilham em absoluto, e não se transmutam nas brumas morosas da manhã. São carvão despedaçado, cinza perdida em meio ao cinza. Meu mundo monocromático de vazio e trevas padeceu sob meus pés novamente, puxando minhas asas pesadas.
            Eu não sei voar. Eu voei tão alto, e não foi suficiente.
            Sob este filtro sem cor ou ror, nós somos mais uma vez parecidos. Estamos mergulhados na melancolia, encharcados até a cabeça deste líquido pegajoso que nos puxa para baixo, que afoga nossas asas. Encobertos de piche e trevas, ambos negros e insignificantes, obtusos e cegos. Quanto da imensidão azul, a imensidão azul do horizonte e tua, quanto dela sobrou? Aqui, tudo é pequeneza e negrume, e não há nada que ainda te sejas. Ah, pássaro azul, pra onde tu voaste, já que não estás mais aqui? Não há ninguém ao meu lado, e não há voz que me cante.
            O silêncio me oprime. Eu não posso ouvir mais nada. A ausência de som e a ausência de tudo me violam e matam, e não há ar para respirar. Como eu poderia voar, se já não há o céu das manhãs, se não há espaço para qualquer direção? Eu sempre estive perdida, porque nunca houve nada para achar.
            Eu me sinto vazia. A correnteza de trevas levou meus sonhos e meus sorrisos, e também minhas asas. E eu só consigo aumenta-la, afogando-me em minhas próprias lágrimas, escura e opaca e pequena, tão pequena e só.  

sábado, 6 de julho de 2013

Relance

             Vi-a de relance. Do jeito que eu veria sempre a partir de então; vi-a de relance num banco de um ônibus, deslizando seus grandes olhos pela janela de trás, pétrea e banal em seu perfil de camafeu esquecido. Vi, e foi um susto. Todos aqueles anos a haviam recoberto de uma camada de mofo muito sutil, desfazendo-se toda vez que pensava em nossa antiga amizade, jamais se esverdeando no mofo irreversível das relações mortas e fugidias. Mas há muito não a via assim, material. Ela era um dos retratos fulgurantes da minha sala secreta, um dos fantasmas queridos da minha mente insone. E, no entanto, lá estavam seus olhos graúdos, impenetráveis e escuríssimos, com aquelas trevas profundas que ela usava para esconder a si mesma tão bem.
            Ela não me viu. Permaneci sentada num dos bancos da frente, observando-a numa indiscrição íntima. Onde quer que ela estivesse, era passado; o que quer que ela fitasse, inclinando o pescoço pálido sobre os quilômetros sujos do asfalto, ficara para trás assim como ela mesma. Era toda vintage, como uma boneca de porcelana riponga. A mão de dedos longos demais segurava uma bolsa de palha, como se estivesse pronta para colher flores em algum campo com sua cesta espaçosa. Perscrutei sua concentração apática. Ela não parecia sequer respirar sob a imagem da janela. E peguei-me pensando em nosso passado, nossos segredos compartilhados, nossas estranhezas identificando-se numa amargura melódica, e tudo o que já fora superado pelo tempo e pelo futuro, pela distância e pelo silêncio. Será que ela também se perdera? Embolara-se no limbo embolorado no qual eu mesma me encontrava? Será que seus olhos gigantes também haviam se tornado turvos, incapazes de enxergar o que estava a frente, paralisados no que era palpável e pungente, numa miopia temporal? Ou ainda, eu me perdera no seu passado como ela se perdera no meu?
          E vi que eu e ela ainda éramos iguais. Onde quer que estivéssemos, estávamos perdidas no que ficara para trás. Como dois fantasmas condenados a observar, plácidos, os quilômetros consumindo-se sob os pneus.

Éramos apenas um relance para o mundo. 

quinta-feira, 13 de junho de 2013

As Mil Gaiolas




            Percebi que eu não sei ser eu mesma. Veja bem, não é como se eu não soubesse exatamente o que sou; mas sabendo, apenas intuitivamente, desse o quê, a totalidade do seu funcionamento ou dos seus objetivos ainda me é uma completa incógnita. Ainda, não. Subitamente. Eu talvez já tenha sido uma melhor conhecedora de mim mesma, ou pelo menos estar alheia à minha própria ignorância tenha me mantido na ordenada placidez de um conforto. E usava de tal privilégio com certa arrogância, escrevendo metáforas engaioladas como o mais profundo pesquisador de si mesmo. Ainda há pouco, uma dessas gaiolas caiu ao chão e eu, pássaro fúnebre e desolado, orgulhoso de minha melancolia poética, voei por prados não tão distantes, procurando pela voz de um amor. Mas hoje vejo que, tendo o encontrado, não percebi o complexo férreo no qual minhas asas estiveram envoltas desde sempre. A minha gaiola encontra-se emparedada numa profusão de outras mil, jogadas desordenadamente uma em cima da outra, como ferro velho, dentro de uma grande e majestosa gaiola principal. Debaixo de todas elas, esmagadas por um peso lancinante, minhas asas tremem e falham, e eu choro copiosamente enquanto tento, numa delicadeza torturante, retirar, pena por pena, cada um dos meus pedaços. E acabo descobrindo que eu mesma sou uma gaiola, e que dentro de mim há ainda mais gaiolas. O meu mundo é coberto por arames farpados e lúgubres cadeados, e eu nunca havia percebido meu próprio presídio fatal.
            Como pude ser tão cega? Há tantas correntes separando-me de mim mesma, que eu não posso ter sido, algum dia, capaz de enxergar meu apático vulto. Caminhei exaustivamente pelos prados que não eram meus; lavrei incessantemente a terra que nunca me pertenceu. Afundei-me na lama a léguas de meus domínios; e deitei-me nas camas de outras cabeças. Minha miopia impediu-me de vislumbrar o que não estava a centímetros de meu nariz, e eu tive de me afastar demais para perdê-la. Será que precisei tornar-me o oposto de mim mesma para saber quem sou? Como um reflexo no espelho, uma imagem real e invertida, e ainda assim o único reflexo, a única visão, a única maneira de olhar para mim mesma através de meus próprios olhos. Enfrentei os monstros de minhas masmorras, mas enganei-me ao pensar que eles estavam mortos, decrépitos e decompostos em suas jaulas reluzentes das trevas do meu eu. Hoje mesmo, um deles despertou.

domingo, 26 de maio de 2013

Apenas um fantasma



            Ela é apenas um fantasma agora.
            Repito isso para mim mesma, escrevendo-o num papel. Leio, e uma voz imaginária, de segurança e convicção assombrosas, profere cada uma das palavras com sua clareza de telemarketing. Ela é apenas um fantasma agora. Daqueles quietos e resignados, que não tiveram interesse sequer de permanecer sob o mesmo teto que eu, muito calada e superior em suas aparições esporádicas, quando eu declamo minhas reclamações tardias e não recebo qualquer reação. Ela é apenas um fantasma agora, uma névoa tênue e esmirrada, tão pequena quanto era em vida, mas profundamente mais distante. Deveria aproveitar essas visitas inconvenientes e exorcizá-la de vez; e no entanto ela não ficaria por tempo suficiente nem sequer para isso, não suportaria minha materialidade fria de humana pulsante. Atravessou as barreiras etéreas sem qualquer motivo, não um que não estivesse selado num recanto muito obscuro de sua própria psique infantil. E eu nunca compreendi esse segredo, ou talvez, quando uma vez o ouvi sussurrado no meu ouvido, tenha preferido relega-lo ao esquecimento, do jeito que deveria ter feito com ela. Já vi tantos fantasmas, tantas partidas; mas há algo de fascinante e pungente na ida dela, algo que eu jamais saberei por completo ou considerarei deste mundo. E aí também há problema: exatamente por isso fomos separadas em esferas diferentes. Por mais que em algum momento eu tenha chegado a acreditar, na minha maternidade ilusória, que estivéssemos lado a lado.
            Ela não passa de uma alma errante, de um espectro borrado do que um dia eu pensei ser meu. Tinha a impressão de enxergar a mim mesma em seus repentes pueris, sua fragilidade nervosa, sua surpresa e fé e um não sei o que de contos de fadas, daqueles que acabam com uma princesa sozinha. Gritei insultos aos ventos, esperando que seus dragões em pele de cordeiro se revelassem; e consegui livrá-la de um ou outro, até que ela arranjasse algo para completar a estória. Mas ela escreveu o resto sem mim. E continuo a vendo em tantos lugares, mas tenho certeza que ela não me vê em nenhum.
            Talvez eu sinta falta de tudo ao redor dela, mas de seu vulto translúcido, essa coisa que me assombra em sumiço, não tenho mais tanta certeza. Pois às vezes creio que ela, em sua magia fúnebre, tenha roubado um pedaço de mim apenas para que eu vivesse sem ele. Seu rosto rachado de boneca de louça não guarda nenhum segredo puro para mim; ela tem sangue em suas mãos, por mais que pense que só as pessoas de carne e osso possam fazê-lo. E talvez tenha mais que nas minhas, com toda minha nefasta manipulação volúvel.
            Faço-lhe uma prece, uma lamúria silente na noite. Pois àquela que nunca compreendeu o amor, o mais verdadeiro parecerá uma infâmia. E ela é apenas um fantasma agora. 

sábado, 23 de março de 2013

A Casa Lotada


              Lotado. Está lotado aqui.
            Lotado demais, e muito pouco também. Há muito que excede e mais tanto que falta. Mal consigo mexer meus braços, e meus passos se perdem e caem sobre o chão gelado. Tento estender minha mão, mas não há ninguém para pegá-la. Quando porventura uma daquelas sombras consegue tocar-me, quando seus dedos de éter se entrelaçam nos meus, elas zombam e gritam e me envolvem com força, acalentando-me do frio invisível de suas garras, jamais puxando-me para cima ou erguendo meus olhos, jamais acordando-me com seus sussurros ensurdecedores. Mortas, elas roubam meu fôlego, tentando reviver através de meu corpo, minhas veias, minhas forças em cativeiro. Estão condenadas ao passado, mofadas e mortiças, mas permanecem presas às paredes, aos móveis, a cada batida de um coração amaldiçoado pela memória. As memórias minhas que se juntam às tuas; alguém me chama, mas eu não posso ouvir. Tu entraste como amante, mas trouxe muitas delas. E como uma médium condenada, fico a observar os fantasmas de outrora, e eles são tantos e tão reais, que lotam o meu lado vazio da tua presença.
            Os ponteiros do relógio travam e calam-se. Resta-me esta casa que divido com as aranhas, restam-me suas teias quebradiças e fatais. Houve um dia em que fui beijada, e, apesar de tantos fantasmas, não me lembro tanto dele; não me lembro do momento em que senti algo terrestre, não me lembro do momento em que estive no mundo físico. Não porque estou morta; mas não seria isto a morte? Alguém me chama, alguém me toca. Mas eu não posso sentir. Minha mente lotada de vozes sussurra os refrões de uma canção desimportante, preenchendo meus ossos vazios de mofo, apodrecendo meu corpo e minha juventude, levando-me a cantar com ela aquela melodia que não diz mais nada, mas significa tanto. E no entanto minha garganta está seca, e tu já foste embora há tempos. Criarei um fantasma para ti também, como aquele que já ocupou tua ausência. E o colocarei ao meu lado, e, por ser um fantasma, ele não terá nenhuma memória além da minha.
            Não lembro mais do mover do relógio. Há tanto tempo a poeira cobriu a cor de seus ponteiros, e uma aranha o tornou sua casa; talvez as paredes estivessem muito cheias, lotadas de tantas outras coisas esquecidas pelo mundo. Grudentas de teias, de memórias e almas, tantas almas, que não sobrou nenhum espaço para a minha. E esqueço o que tanto faltava, por mais que talvez a única coisa que não estivesse aqui fosse a singela e deslocada presença de mim mesma. 

sábado, 9 de março de 2013

Aquilo que falta


Quando eu era pequena, queria ser astronauta. O que hoje parece um sonho infantil, daqueles que não merecem fé ou atenção, faz total sentido para minha mente decididamente inapta às ciências e aos cálculos. Desde pequena, eu queria sair do planeta. Desde pequena, eu queria voar. Voar para mundos longínquos enquanto minha vista de fora enxergava à minha própria terra com uma nitidez grande demais; enquanto meu corpo planando na falta de gravidade jamais se encostava ao solo por mais que alguns segundos; enquanto todo o universo e seus mistérios pareciam um lugar mais confortável que a praticidade das coisas terrenas; enquanto eu ainda não tinha que saber de nada em definitivo.
O que quer que eu fosse buscar um dia, estaria longe. Fora da Terra. E acredito que estava certa, pois até hoje não o encontrei. Tenho a impressão de ver uma faísca, uma espécie indizível de rastro daquilo que procuro por vezes; tenho a impressão de ouvir uma nota de minha própria essência nas canções mais distantes, naqueles ofícios que exigem juventude e vocação; e pareço fita-lo turvamente entre as linhas que eu mesma escrevo, derramado sobre a página como o sangue de algo que definha, mas nunca morre. Seria mais fácil que meu quê invisível, minha missão secreta, passasse de um moribundo incômodo a um defunto resignado. Seria mil vezes mais fácil adaptar-me às engrenagens da Terra, arrumar-me num papel previsível, tomar um rumo no que chamam enfaticamente de vida, enfiar meus pés no solo como os adultos fazem, como os adultos devem fazer, e prefiro de verdade ser uma adulta. Mas há algo que falta; há algo fora de lugar. Há algo distante demais, algo que é meu. E meus pés flutuantes, levando-me a todos os cantos que posso olhar, não conseguiram me levar até ele.
Não sou uma astronauta. Sou uma escritora. Ou ao menos penso que sou, cega demais para encontrar a única coisa que interessa. Mas não há futuro nisso por aqui. Para os que parecem ter encontrado seus rumos na vida, o lado de fora não interessa. E meus pés ainda não afundam sobre o solo. 

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Doce Tolice


Tenho um pássaro azul de penas rebeldes, de voz afinada, da cor do céu da manhã mais límpida; tenho-o e tenho orgulho, pois ele me tem e somos felizes. Tenho um pássaro negro de penas brilhantes, de asas quebradas da cor da noite mais profunda; tenho-o como tenho a mim mesma, fenecendo-se no brilho de um dueto bem bobo. Tenho um pássaro azul da cor das marés, e um pássaro negro de tons abissais. Tenho a luz e o escuro e todo o mais; tenho as ondas e o céu e o amor, e não preciso de nada mais; nada além do teu calor. 

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Tempo


             Há quem diga que o futuro não existe. A cada segundo de presente, produzimos simultaneamente passado e futuro, desprezando a golfada de ar que já respiramos, expirando-a como havia de ser mais à frente, e deixando-a para trás novamente, até irmos em busca de outra e outra, numa repetição entediante que é, afinal, a própria vida. Ao pensar no conteúdo de meus pulmões, subitamente eu quase o perco; o tempo não existe até que eu o encare. E ter de lidar com suas investidas, seu olhar invisível que não pode, num relance, ser ignorado, faz com que meu peito pareça sufocado e meu pulso acelere sem motivos palpáveis. Prestes a fechar o primeiro ano de minha segunda década de vida, eu olho demais para algo que costuma ser vislumbrado, com alguma resignação mórbida, por aqueles que já contam mais do dobro de minha idade. E percebo que sempre estive enleada aos amores desta força imaterial, contemplando demais os movimentos do relógio e jamais aproveitando-os por completo; que deixei que muito de meu alento fosse perdido numa daquelas pausas silentes e profundamente perturbadoras nas quais eu olhei para a frente e o vi, movendo-se sem fim; que, encarando-o, não reparei quando perdi ele de vista; e que agora, por mais que eu ainda o veja, há muito dele que perdi.
            Acostumada a gastar horas observando sua magnitude, eu, pela primeira vez, foquei-me em um de seus membros mais difusos. A massa amorfa do futuro caiu em minhas mãos e eu a moldei, numa simplicidade surpreendente, em cenas e fatos e planos tão realistas que, por um momento, pareciam pertencer ao presente. Presa num misto de fascinação e temor, eu mexo em seus detalhes como uma criança a explorar a nova casa de bonecas. Mas meus dedos se sujam de pó, e é muito fácil fazer uma cena desmoronar, e toda a minha fundação imaginária se esvai, dissolvendo-se novamente na massa etérea que era e é. Sabendo-o frágil, o instável futuro que se ergue e despenca, eu o reconstruo, permanecendo imóvel, com a mais dolorosa consciência de que um movimento meu alterará tudo. E assim vejo-me condenada à mera contemplação do que não vai ocorrer, subjugada pelo poder do imprevisível, paralisada e com medo e frio. A massa amorfa com que pensei tecer projeções não passa de ilusão. O futuro é um breu absoluto onde meus olhos não podem enxergar.
E o tempo não existe até que eu o encare.