quinta-feira, 1 de maio de 2014

Doença



Peguei a tesoura com o fogo que se pega uma faca; não a olhei. Quanta ingenuidade a minha, na sensação de possuir naquela lâmina uma arma! Quanta ingenuidade a minha, ignóbil e desfocada no canto, carne viva e pulsante, músculos retesados de tensão, pele gelada de suor, e o odor do corpo elevando-se na sua humanidade desagradável. Era a arma que tinha, a pequena e insensata tesoura. Apenas o que me restara, pois eu mesma era o mofo que sobrara de um apocalipse ignorado. Já nascera desprovida de um sonho que nunca soube sonhar, esquecida da memória que já não importava, mas que era esquecida por ainda estar lá, escondida sobre uma barreira de cinzas e destroços orgânicos e etéreos de toda espécie. Não nascera completa como todos os outros; tinha algo a mais que me era fúnebre, algo a mais que  me fazia falta, algo a mais como um membro fantasma que sentimos tocar mesmo quando a carne já foi arrancada. Encaixei as reentrâncias nos dedos, puxando o gatilho imaginário. Esperava cortar o anexo, por mais que não o visse, por mais que não soubesse por onde deslizar a lâmina; cortaria muitas outras coisas no caminho. Comecei pelo cabelo. Mechas enroscaram-se nos dedos e então caíram, lânguidas, sobre o chão. Sobre o porcelanato gelado, fios se desencontraram, como moscas perdidas, espalhando-se, revoando.
Cadáveres adormecidos mutilados, linhas incertas e tortas que pregavam nos pés, sem dono, sem destino. Filamentos de um matiz muito amargo de chocolate que se contorciam e formavam palavras, e no entanto jamais davam respostas; acumulavam-se, um a um, e não havia nada neles além de mim, mas eu ainda estava inteira e desfeita no canto, e não havia efeito. Arranquei as roupas. Picotei-as dos lados, destruí suas bordas, destrocei o tecido. Retalhos de uma erupção indeterminada como balões estourados. Meus seios expostos, redondos e desproporcionais, seios expostos ao gosto de todos, seios simbólicos e despudorados, seios expostos pela arte de não ter mais o que expor. E imaginei os seios de outras, e imaginei bocas, lábios e línguas e fluidos, todos misturados num vórtice de pele e cheiro, e imaginei os lábios dele sobre os seios dela, e imaginei-o ereto, mergulhando, mergulhando...Quando todos mergulhavam o tempo todo, todos mergulhavam juntos, e eu era a única que não sabia nadar, e foi não sabendo que eu afundei, afundei sem jamais conseguir subir de novo. Eu não tinha a capacidade de manter-me na superfície segura das coisas incertas, e todo o meu sangue pulsava numa ordem, uma ordem maior, e no entanto essa ordem era química como tudo o que somos, e não resta nada além dos meus ossos e do meu sangue, eu não sou nada e sou tanto; pois sempre soube que havia algo grande demais dentro de mim, e mesmo por isso errado. Era maior do que eu, maior do que todos, era do tamanho das profundezas que não se ousava alcançar. E lá estava a carne dela, essa grande mulher que afinal eram todas, todas fora de mim, todas exceto eu...e rasguei a saia, rasguei a pele, molestando a mim mesma numa intimidade obcecada. Ainda era inteiriça, e tudo o que eu precisava abandonar estava fundo, tão fundo que nem ele, mergulhando tantas vezes, conseguiu extrair. Estava voando; fazendo qualquer coisa que pássaros fizessem. Se atirando sobre a superfície de um rio para caçar um inseto indefeso; deglutindo a carcaça crocante de um inseto indefeso; perscrutando a andança inocente de um inseto indefeso. Bebendo a água de poleiros estranhos; fitando as matas de uma floresta distante; esvoaçando para longe, cada vez mais longe, até que suas asas ultrapassassem a atmosfera e se esfacelassem no vazio do universo. Então, ele seria um punhado de poeira cósmica inútil; um punhado de ossos esfarelados e órgãos liquefeitos, um punhado de insetos digestos apodrecidos. E eu estaria no fundo da terra, presa numa bacia úmida e sufocante, cantando um sussurro quando os campos estivessem solitários e minha gaiola, bem alta. Mas percebeu que eu tenho, afinal, um a gaiola; e decidiu me deixar por lá. Todas as outras coisas estão despidas e expostas, todas as outras coisas estão abrindo-se para os lábios caçadores dele. Todas as coisas estão escancaradas de forma que eu não possa vencê-las, e já cortei tanto de mim, mas ainda não estou aberta...inteiriça e confortável, com uma ferida que escorre, escorre, mas tem casca, uma casca fina e diáfana que me sela do mundo. Quero partir-me em mil pedaços e deixar que mergulhem sobre mim. Quero ser lúbrica e exata como elas, como todas elas, toda essa grande mulher que me arranha com mil unhas e mil dentes, quero ser o fluido embebendo a pedra, e, no entanto, estou seca...

Nenhum comentário:

Postar um comentário