A palavra não
basta. A sua materialidade preta sobre branco atravessa, perfura, esvai-se também.
Carne e osso, um corpo limitado pela carne e pelo osso, e meus dedos são
agulhas de carne também, e são efêmeras, e atravessam. Nada que é eterno se
retem à carne; a carne é verme, é pó, podridão fúnebre, química previsível.
Nada que é eterno é sequer remotamente ligado ao tempo. A eternidade é uma
coisa. O tempo, outra. O tempo é matéria e névoa, um híbrido egoísta: o corpo é
o presente, e o passado e o futuro são massas amorfas de energia inútil, como o
são, na humanidade, os sonhos e o pensamento. Tudo que não é físico se perde no
tempo. É expelido pelo organismo como matéria fecal. Os tolos que se prendem
aos vapores do invisível são como drogados irrecuperáveis, cuja lâmina da
praticidade ainda não lhes cortou as lágrimas. Meus sonhos são etéreos. Eu
jamais posso alcançá-los. Quanto mais perto chego, até o contato final, mais
rápido é o fim; atravesso-os. Os sonhos são etéreos, mas eu sou material. Quero
esfacelar a minha carne e virar uma outra coisa.
Quero ir para o
lado das coisas sonhadas, e por isso eu não posso existir. Os sonhos são como
tumores malignos, porque não têm utilidade. Não deveriam estar ali, mas
crescem, espremendo-se entre os órgãos vitais, atrapalhando o movimento do corpo,
que é por si só uma coisa prática e não mais do que isso. O etéreo vira vento
insalubre, congelando as minhas orelhas. Atravessando, atravessando, atravessando,
sem nunca ficar.
Eu sonhei contigo por muitos anos. Mas se te sentires desrespeitado, não te culparei a ofensa. Tu és alguém, sujeito compacto e definido, bem preso aos teus ossos e seguro sobre os pés. Tu atravessas o etéreo e não pode ser sonhado; copiei uma versão de ti mais imperfeita, mais amada, mais bonita. É o paradoxo final: eu sonho com a tua cópia mentirosa e mesquinha. Roubei tua imagem, como uma xerox criminosa, e a violei. Já não é mais contigo que sonho, nem és tu meu amor. É ele, mas eu não posso alcançá-lo.
Eu sonhei contigo por muitos anos. Mas se te sentires desrespeitado, não te culparei a ofensa. Tu és alguém, sujeito compacto e definido, bem preso aos teus ossos e seguro sobre os pés. Tu atravessas o etéreo e não pode ser sonhado; copiei uma versão de ti mais imperfeita, mais amada, mais bonita. É o paradoxo final: eu sonho com a tua cópia mentirosa e mesquinha. Roubei tua imagem, como uma xerox criminosa, e a violei. Já não é mais contigo que sonho, nem és tu meu amor. É ele, mas eu não posso alcançá-lo.
Traí-te.
Traí-me.
Fico com os
fiapos. Aprecio-os, santifico-os. Beijo os lábios da minha Annabell Lee,
enquanto ela ainda é um sonho visível fora do tempo. Annabell Lee, uma
lembrança terna; que se perde e se esvai no presente, na carne, pois da carne
só sobrou o pó, e é apenas a carne que conta, que existe no corpo. Annabell
Lee, que está apenas morta; Annabell Lee, que é raramente lembrada, como,
afinal, toda memória.