quinta-feira, 1 de maio de 2014

Sonho

A palavra não basta. A sua materialidade preta sobre branco atravessa, perfura, esvai-se também. Carne e osso, um corpo limitado pela carne e pelo osso, e meus dedos são agulhas de carne também, e são efêmeras, e atravessam. Nada que é eterno se retem à carne; a carne é verme, é pó, podridão fúnebre, química previsível. Nada que é eterno é sequer remotamente ligado ao tempo. A eternidade é uma coisa. O tempo, outra. O tempo é matéria e névoa, um híbrido egoísta: o corpo é o presente, e o passado e o futuro são massas amorfas de energia inútil, como o são, na humanidade, os sonhos e o pensamento. Tudo que não é físico se perde no tempo. É expelido pelo organismo como matéria fecal. Os tolos que se prendem aos vapores do invisível são como drogados irrecuperáveis, cuja lâmina da praticidade ainda não lhes cortou as lágrimas. Meus sonhos são etéreos. Eu jamais posso alcançá-los. Quanto mais perto chego, até o contato final, mais rápido é o fim; atravesso-os. Os sonhos são etéreos, mas eu sou material. Quero esfacelar a minha carne e virar uma outra coisa.
Quero ir para o lado das coisas sonhadas, e por isso eu não posso existir. Os sonhos são como tumores malignos, porque não têm utilidade. Não deveriam estar ali, mas crescem, espremendo-se entre os órgãos vitais, atrapalhando o movimento do corpo, que é por si só uma coisa prática e não mais do que isso. O etéreo vira vento insalubre, congelando as minhas orelhas. Atravessando, atravessando, atravessando, sem nunca ficar. 
Eu sonhei contigo por muitos anos. Mas se te sentires desrespeitado, não te culparei a ofensa. Tu és alguém, sujeito compacto e definido, bem preso aos teus ossos e seguro sobre os pés. Tu atravessas o etéreo e não pode ser sonhado; copiei uma versão de ti mais imperfeita, mais amada, mais bonita. É o paradoxo final: eu sonho com a tua cópia mentirosa e mesquinha. Roubei tua imagem, como uma xerox criminosa, e a violei. Já não é mais contigo que sonho, nem és tu meu amor. É ele, mas eu não posso alcançá-lo.
Traí-te.
Traí-me.
Fico com os fiapos. Aprecio-os, santifico-os. Beijo os lábios da minha Annabell Lee, enquanto ela ainda é um sonho visível fora do tempo. Annabell Lee, uma lembrança terna; que se perde e se esvai no presente, na carne, pois da carne só sobrou o pó, e é apenas a carne que conta, que existe no corpo. Annabell Lee, que está apenas morta; Annabell Lee, que é raramente lembrada, como, afinal, toda memória.

Doença



Peguei a tesoura com o fogo que se pega uma faca; não a olhei. Quanta ingenuidade a minha, na sensação de possuir naquela lâmina uma arma! Quanta ingenuidade a minha, ignóbil e desfocada no canto, carne viva e pulsante, músculos retesados de tensão, pele gelada de suor, e o odor do corpo elevando-se na sua humanidade desagradável. Era a arma que tinha, a pequena e insensata tesoura. Apenas o que me restara, pois eu mesma era o mofo que sobrara de um apocalipse ignorado. Já nascera desprovida de um sonho que nunca soube sonhar, esquecida da memória que já não importava, mas que era esquecida por ainda estar lá, escondida sobre uma barreira de cinzas e destroços orgânicos e etéreos de toda espécie. Não nascera completa como todos os outros; tinha algo a mais que me era fúnebre, algo a mais que  me fazia falta, algo a mais como um membro fantasma que sentimos tocar mesmo quando a carne já foi arrancada. Encaixei as reentrâncias nos dedos, puxando o gatilho imaginário. Esperava cortar o anexo, por mais que não o visse, por mais que não soubesse por onde deslizar a lâmina; cortaria muitas outras coisas no caminho. Comecei pelo cabelo. Mechas enroscaram-se nos dedos e então caíram, lânguidas, sobre o chão. Sobre o porcelanato gelado, fios se desencontraram, como moscas perdidas, espalhando-se, revoando.