quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Refúgio



            Eu estava de volta. Meu elemento, minha sina. Meu estranho refúgio fúnebre, escondido entre as grades que só eu sabia desbravar. Longe de tudo, mas dolorosamente próximo, próximo demais para que fosse seguro—próximo demais para que eu, em meu torpor, não pudesse encontrar seu caminho escuro, escorar-me diante de suas lápides geladas, sentir sua brisa insalubre penetrando por cada poro de meu corpo. O tempo todo, aquele terrível recanto da morte estivera perto demais para que eu pudesse respirar tranquilamente, e ainda assim eu o evitara, desviando minha vista míope do que não estava longe o suficiente para ser invisível. Agora, no entanto, eu pisava em sua terra com o mais profundo reconhecimento. Meus pés afundavam na lama, enegrecendo-se, sujando-se, cortando-se vez ou outra com algum resquício desconhecido do que viera para me receber. Uma pesada chuva enregelava meus ossos, meus frágeis ossos proeminentes, a uma temperatura mortal. Eu era novamente real. Novamente eu. Novamente morta.
            Eu já vira aquela chuva antes. Não dera um nome para ela, como sei que não se dá nomes a nuvens ou dias ensolarados. Eu sabia, no entanto, qual era aquela chuva. Não era trivial. Não era corriqueira. Suas gotas me conheciam com intimidade suficiente para arranhar minha pele, adentrar minhas unhas, congelar minhas articulações—e eu não faria nada. Eu não faria nada com o frio profundo que enregelava minha espinha, não temeria a inconsciência com o instinto de um vivo; eu desejava a inconsciência. Desejava um Éden etéreo onde minha mente dormente pudesse, finalmente, descansar. Eu não era mais que um torpe pecador antiquado, do tipo que não existe mais, apenas no meu mundo. Mas aquele era meu refúgio. Eu não podia enganá-lo. Minhas mãos estavam sujas de sangue, e apenas eu poderia lavá-las. A chuva caía. Sussurrava maldades em meu ouvido, inundando-os; estes, contudo, jamais paravam de ouvir. Meus olhos intumesciam, inundando-se também; e jamais paravam de ver. Meus pelos arrepiavam-se, minha pele enrugava-se ao excesso de água. Mas eu jamais parava de sentir.
            Vi corpos sem face, vultos sem cor, sombras sem luz; todos se dissolveram ao meu redor no mesmo instante em que os notei, e eu me vi, deplorável, a implorar para que voltassem, não me abandonassem, para que concedessem ao menos um décimo de seu perdão. Os poucos rostos de névoa que alcancei não possuíam olhos para me ver. Seus corpos sem forma desvaneceram em meus dedos sujos de sangue, sem que se manchassem com meu toque. Eu estava sozinha, absoluta e imutavelmente sozinha. Cambaleei, arranhando meu pé num galho caído. Tentei enxergar minhas pernas, mas meus olhos avistaram meu peito. E eu finalmente entendi. Soltando meus punhos fechados do tronco, observei a fenda profunda que se abrira em minha pele, tornando todo o meu vestido, um dia branco, em uma grande mancha escarlate. Todo o meu sangue esvaía-se pela ferida que eu não percebera existente; e então eu sabia, ou talvez lembrasse, que minhas mãos haviam se sujado por minha própria culpa.
Transtornada, apaticamente enfraquecida pela dor, eu olhei ao redor. Meu destino me aguardava. Meu estranho refúgio fúnebre, materializado no escuro buraco em meio à terra. Eu caminhei em sua direção, um sentimento novo formando-se, timidamente, em meu peito machucado. Estiquei meu pé arranhado sobre sua extensão, integrando-me à profundidade. A água da chuva já deitara sobre meu leito, aguardando-me em seu presente. Descansei minha cabeça sobre ela, sem sentir o frio congelante de outrora. Eu estava de volta. Meu elemento, minha sina. Piedosa, a torrente desfez as paredes de terra, envolvendo-me em suas trevas pacíficas. Meu Éden etéreo se aproximava, tornando-me dormente. O descanso que eu tanto aguardara finalmente chegara.