sábado, 5 de novembro de 2011

O Pranto do Pássaro Negro ou Outro Conto na Gaiola


             Pequeno pássaro negro, eu o vejo tão frágil. Logo tu, pássaro terno, que ostentas as mais belas penas e as mais belas asas, tão inerte e diminuto em tua elevação prateada. Ontem mesmo eu o ouvi piar, e piava tão alto, tão forte, que parecia lamentar o tipo de tristeza mais profunda, das profundezas da intensidade que só se sente num certo tipo de alma, que a ti é familiar. Sim, pássaro negro, pois eu sei que tu tens o tipo de alma que não se vê ou entende, o tipo de alma que apenas se sente, que vive sentindo e sem sentir não vive. Está tão alto que quase não posso te ver, e, no entanto, teus pios são sempre audíveis, no teu pranto sujo de lágrimas negras. As penas delicadas que cobrem tuas asas, como as enxerguei um dia, já esmorecem e caem pelo vento, uma lágrima reluzindo em cada uma.
Será possível, pássaro negro, que ergueram ainda mais a tua gaiola? Não é triste observar o céu, sentir-se tão perto da lua e jamais poder busca-la? Eu o vejo ensaiar um ou dois voos, e, no entanto, não há porta, não há chave...Apenas arranhas as asas nas grades, e daí elas vêm visitar-nos aqui no chão, com aquelas lágrimas que já citei. Teu pecado foi tua paixão, pássaro negro. Teu pecado foram os anos adormecidos num sustentáculo tão férreo, tão sólido, tão intransponível às tuas asas de azeviche. Tu foste presenteado com penas tão lindas, com lendas tão lindas, pois delas tu necessitaria; em tua gaiola tu deve criar-te a teu mundo, lustrar teu corpo alado, inventar, tu mesmo, teus próprios céus e aventuras, simular a liberdade jocosa que te observa todos os dias a balançar com o vento sem nunca desbravá-lo. E assim tu gritas, e choras, e desenhas, e escreves, porque, além disso, não passará jamais. Gritas, choras, desenhas, escreves e cantas, mas sempre escondido, pois teme que tua voz delicada seja tão frágil quanto as porcelanas quebradas no chão, tantos pedaços de louça escorridos dolorosamente pelo chão, arranhando mais cada vez que são pisados.
Mas te digo, pássaro negro, como bom amigo e admirador, pois já ouvi teu pranto dia e noite, teu mais triste lamentar: se sais da gaiola, voa para longe, muito longe. Pois sei bem que a tua liberdade é ostentada demais para ser mantida distante. Não deixas teus carcereiros te avistarem, pois tuas penas são preciosas demais para estarem soltas. Não deixas os ventos te trazerem de encontro à gaiola novamente. Se te conheço bem, porém, sei que tu não partirás. Tu não partirás porque, na gaiola, estão teus mundos, teus céus, teus ares bravios percorridos sem fim. Não deixas que eles os tranquem na gaiola, pássaro negro.
Não choras, pássaro negro. Lembra que teu pecado é tua paixão, e deixas de sentir.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Segredo

Frio. Você acaba de ir e a única reminiscência de tal encontro é o frio. A única coisa que você deixou aqui, sobre a minha pele e meu espírito, além de resquícios de saliva e umas lágrimas guardadas, é o mais puro e inconsolável frio, a mais doce e incontrolável penúria a estreitar-se entre cada um de meus músculos.  Dor. Você já provocou dores, dos mais diversos tipos; dores físicas, carnais, dores emocionais e até dores, ouso dizer, perpétuas. Você acaba de deixar mais uma, e eu sei que cuidarei dela com a mesma freqüência e o mesmo ardor com que cultivo todas as outras, mimando-as como os pequenos bebês rechonchudos que são, e então, algum dia, libertando-as para um mundo no qual não se sabe o que virá pelo amanhecer. Falta. A lembrança costumeira das tuas visitas, que eu um dia ainda aprendo a tecer com a mesma maestria. A estranha depressão que se afunda, imaterial, no meu peito, que se instala como cicatriz na minha carne, e, ainda assim, é invisível.
Fico a pensar se, nas minhas visitas, eu o deixo guarnecido de tantas coisas, tantas impressões, tantos pedaços de mim languidamente entregues à tua posse desinteressada de varão. Fico a imaginar quanto de mim tu ainda usas; quanto de mim tu ainda sentes cravado na tua pele pálida e cheia de ossos, quando a minha própria já não te envolve. Fico a recordar a tua imagem nos pequenos pedaços que tu me deixaste fabricar com a tua essência, no cheiro peculiar que vem cheio de notas tuas, mas com muitas notas minhas também. E então te procuro, e gritas, e dizes que de mim vem toda a tua angústia vulgar, toda a tua irritação acadêmica. E não sabes, caro amado, o quanto isso me fere, o quanto isso ressoa persistentemente nas redondezas pétreas do meu frio, o teu frio, o frio que tu deixaste antes e agora congela, deteriorando o que de belo tivera tempo de nascer.
Mas tu pensas que não te amo, quando escrevo estas linhas amargas, e no entanto não compreendes o quanto há de amor na dor que aqui descansa.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Refúgio



            Eu estava de volta. Meu elemento, minha sina. Meu estranho refúgio fúnebre, escondido entre as grades que só eu sabia desbravar. Longe de tudo, mas dolorosamente próximo, próximo demais para que fosse seguro—próximo demais para que eu, em meu torpor, não pudesse encontrar seu caminho escuro, escorar-me diante de suas lápides geladas, sentir sua brisa insalubre penetrando por cada poro de meu corpo. O tempo todo, aquele terrível recanto da morte estivera perto demais para que eu pudesse respirar tranquilamente, e ainda assim eu o evitara, desviando minha vista míope do que não estava longe o suficiente para ser invisível. Agora, no entanto, eu pisava em sua terra com o mais profundo reconhecimento. Meus pés afundavam na lama, enegrecendo-se, sujando-se, cortando-se vez ou outra com algum resquício desconhecido do que viera para me receber. Uma pesada chuva enregelava meus ossos, meus frágeis ossos proeminentes, a uma temperatura mortal. Eu era novamente real. Novamente eu. Novamente morta.
            Eu já vira aquela chuva antes. Não dera um nome para ela, como sei que não se dá nomes a nuvens ou dias ensolarados. Eu sabia, no entanto, qual era aquela chuva. Não era trivial. Não era corriqueira. Suas gotas me conheciam com intimidade suficiente para arranhar minha pele, adentrar minhas unhas, congelar minhas articulações—e eu não faria nada. Eu não faria nada com o frio profundo que enregelava minha espinha, não temeria a inconsciência com o instinto de um vivo; eu desejava a inconsciência. Desejava um Éden etéreo onde minha mente dormente pudesse, finalmente, descansar. Eu não era mais que um torpe pecador antiquado, do tipo que não existe mais, apenas no meu mundo. Mas aquele era meu refúgio. Eu não podia enganá-lo. Minhas mãos estavam sujas de sangue, e apenas eu poderia lavá-las. A chuva caía. Sussurrava maldades em meu ouvido, inundando-os; estes, contudo, jamais paravam de ouvir. Meus olhos intumesciam, inundando-se também; e jamais paravam de ver. Meus pelos arrepiavam-se, minha pele enrugava-se ao excesso de água. Mas eu jamais parava de sentir.
            Vi corpos sem face, vultos sem cor, sombras sem luz; todos se dissolveram ao meu redor no mesmo instante em que os notei, e eu me vi, deplorável, a implorar para que voltassem, não me abandonassem, para que concedessem ao menos um décimo de seu perdão. Os poucos rostos de névoa que alcancei não possuíam olhos para me ver. Seus corpos sem forma desvaneceram em meus dedos sujos de sangue, sem que se manchassem com meu toque. Eu estava sozinha, absoluta e imutavelmente sozinha. Cambaleei, arranhando meu pé num galho caído. Tentei enxergar minhas pernas, mas meus olhos avistaram meu peito. E eu finalmente entendi. Soltando meus punhos fechados do tronco, observei a fenda profunda que se abrira em minha pele, tornando todo o meu vestido, um dia branco, em uma grande mancha escarlate. Todo o meu sangue esvaía-se pela ferida que eu não percebera existente; e então eu sabia, ou talvez lembrasse, que minhas mãos haviam se sujado por minha própria culpa.
Transtornada, apaticamente enfraquecida pela dor, eu olhei ao redor. Meu destino me aguardava. Meu estranho refúgio fúnebre, materializado no escuro buraco em meio à terra. Eu caminhei em sua direção, um sentimento novo formando-se, timidamente, em meu peito machucado. Estiquei meu pé arranhado sobre sua extensão, integrando-me à profundidade. A água da chuva já deitara sobre meu leito, aguardando-me em seu presente. Descansei minha cabeça sobre ela, sem sentir o frio congelante de outrora. Eu estava de volta. Meu elemento, minha sina. Piedosa, a torrente desfez as paredes de terra, envolvendo-me em suas trevas pacíficas. Meu Éden etéreo se aproximava, tornando-me dormente. O descanso que eu tanto aguardara finalmente chegara.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Falta


            Eu sinto a sua falta. Tanto, mas tanto, que você jamais poderia se permitir acreditar em mim. Eu sinto a sua falta em todos os momentos em que me sinto só. Todos os momentos de trevas arrasadoras, todos os momentos de silêncio inexorável. Eu sinto a sua falta tanto quanto você sente a minha, ou talvez mais.
            Por vezes penso que é tudo mentira. Penso que a falta que sinto é apenas a ilusão personificada em você, apenas o véu de retalhos mofados que eu teci arduamente com meus sonhos e esperanças languidamente jogado sobre a sua cabeça. E eu choro, e como choro, e como quero, como, antes de tudo, preciso que este véu caia sobre alguém. Eu preciso que ele exista. Presumo até mesmo que ele seja meu único sustentáculo real, minha única fundação num mundo totalmente infundado. Por que, então, foi sobre o passado, e não o futuro ou o presente que nem mesmo existe, que o deixei? O presente se esvai como a nossa amizade um dia se esvaiu. O futuro é longo e lento demais para que eu suporte esperar por ele. É sobre o passado, então, que reina a minha felicidade e a minha angústia. E até mesmo pela felicidade jazer neste recanto do outrora que nunca voltará, vive com ela minha angústia, o cálido veneno que descarna meus órgãos todo dia e cessa a tempo de regenerá-los. E ao mesmo tempo, eu não pude suportar tê-la em minhas mãos—a tão desejada felicidade, a idealização de tudo aquilo que eu esperava e procurava sintetizados em uma pessoa.
            Deixe-me explicar o fantástico mundo de Mary após sua partida; deixe-me explicar o que sobrou depois de eu mandá-lo embora. Perdoe-me se eu não consigo exprimi-lo de forma não nonsense. Aproveite, e me perdoe por tantas outras coisas.
            Eu vi suas asas. Sim, eu vi suas asas. Pálidas e refulgentes, tão imponentes que formavam a sombra mais confortável sobre mim. O tempo todo, eu estivera ali, protegida dos raios escaldantes de sol pela sua presença. Ali, iluminada pelo seu brilho nas trevas. Ali, protegida das adversidades e do sofrimento; perfeitamente encaixada num mundo que sorria ao me ver e parecia, mais que tudo, correto. O vento soprava como se tudo finalmente fizesse sentido; como se até o sentido houvesse encontrado a razão de ser. Sim, tudo soava tão certo ao seu lado. Tudo parecia tão próspero, auspicioso, promissor e adequado. E não falo do adequado social, aquele ditado pelas normas da sociedade, e que nem mesmo permanece ditado, pois a sociedade há muito tempo se desfez em milhares de consciências infelizes e perturbadas. E, droga, eu sorrio dolorosamente ao escrever isso, por saber que você concordaria; por saber que você estaria, não importa o que acontecesse, sempre e imutavelmente ao meu lado, naquela maravilhosa sensação de unidade que eu desprezei um dia. Por saber que nossos pensamentos se refletiam e se completavam; por saber que eu jamais teria de pedir desculpas ou temer expressar tudo aquilo que eu sentia de mais vil e de mais verdadeiro ao seu lado. Por saber que você amava todos os meus talentos e, principalmente, todos os meus defeitos.
Eu estava tão acostumada com sua presença, tão habituada à sua companhia, que nem sequer reparei nas suas asas; não reparei na escuridão ao meu redor; nem reparei que deitava preguiçosamente sobre seus braços, a alma perdida em meio às trevas carregada por um anjo de luz pura. E me julgo a criatura mais vil e desprezível no mundo por haver, um dia, ferido o anjo que me amava tão devotadamente, o anjo que suportou tantos desvarios e decepções pela chance de cuidar de mim. Eu seria uma tola se não me sentisse extremamente grata a você. Seria uma tola se permitisse que você se ferisse outra vez—seria uma tola, portanto, se permitisse que você extinguisse as trevas mais uma vez. É amando-o e respeitando-o que me separo de você. É amando-o e respeitando-o que não permito que me segure em minhas quedas. Foi amando-o, meu melhor amigo, que escrevi esta carta com a mais lúcida consciência de que jamais poderei entregá-la.  

Escrito no final de 2009

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Perfil

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Sempre imaginei que escrever sobre mim fosse fácil. Que me definir, explorando meus detalhes mais marcantes e pessoais, fosse como escrever mais um de meus textos exageradamente emocionais, densos e sinceros, onde eu tantas vezes imprimi tanto da minha personalidade. Mas percebo que, quando os escrevia, estava, na maioria das vezes, ou até mesmo em todas, disfarçada debaixo da couraça de um outro ser, de outro personagem, que por metáfora se assemelhava a mim, tomando toda a minha essência. Já fui um corvo, sombrio e engaiolado; já fui uma boneca—a mais peculiar das bonecas—frágil e ornamental em seu canto, podendo quebrar-se a qualquer momento, mas sabendo que seu interior não era oco e que havia esperança; já fui esta mesma boneca quebrada selando-se num castelo feito com suas ilusões; já fui a última humana em frente a uma sociedade de máquinas geladas. É lógico que, desconsiderando o excesso de imaginação e fantasia, todos esses personagens provam algo muito distinto, e passam uma sensação notável de isolamento e exclusão. E talvez eu me sinta mesmo isolada, e há todos os anos de colégio para provarem que eu o fui, e, o sendo, habituei-me a apreciar isso.
          Num certo dia, me distraio durante uma aula, que se passa numa sala com janelas. As nuvens me chamam a atenção, vedando a luz do sol em suas pesadas curvas acinzentadas, carregadas da água que cairá em breve. O vidro é coberto por uma película escura, tornando o ambiente mais agradável em dias muito ensolarados. Eu aprecio a escuridão que as nuvens e a janela me proporcionam, começando, então, uma série de reflexões sobre o contraste. Como alguém que encontra muitas dificuldades em habituar-se ao próprio século em que nasceu, sonhando com o passado, o apogeu do romantismo e a literatura que teria realizado nessa época, eu gosto de me personificar como um ser sombrio e melancólico, um ser basicamente diferente, e, por isso, um ser das trevas. As trevas escondem aquilo que não está no centro, que é preciso olhar-se com mais cuidado para avistar; aquilo que é diferente e não vive apenas no mundo das coisas óbvias e palpáveis. Sendo assim, eu traço uma relação direta e irônica de meu astigmatismo—possuidores dessa doença ocular têm, basicamente, maior sensibilidade à luz, encontrando-se mais confortáveis no escuro e mais vulneráveis à luminosidade—com essa densidade, essa diferença que eu acredito tão grande e que me faz destoar de tudo e todos, ora por isso realmente acontecer, ora por minha própria cabeça, que é exagerada e imaginativa demais. E, se esse paralelo não serve de muita coisa para me descrever, ao menos mostra essa minha inclinação acentuada para a literatura, mesmo que de outra época. E, longe de querer gerar incompreensões, eu pretendo não parecer uma espécie de anti-social aguda, embora, em todas as minhas tentativas de me caracterizar, eu sempre acabe me assemelhando a uma pessoa muito estranha e peculiar. De qualquer maneira, não posso dizer que não gosto disso. De sentir-me diferente e solitária, mas encontrando em cada um que eu amo o valor de 100 que não puderam me entender.
          Fui criada com todos os problemas e caprichos que uma filha única normalmente possui: excessivamente protegida, devidamente mimada, sem irmãos ou família para acompanhar minhas idéias infantis. Desde cedo, devorei os livros que pude, e antes de poder lê-los, incomodava minha mãe freqüentemente, uma folha de papel em minhas mãos, e um conjunto de letras que eu já vira casualmente agrupadas em núcleos separados, tentando formar palavras por pura sorte. Lembro de surpreender-me com as outras crianças, quando estas liam redações na escola. As repetições me incomodavam e pareciam obviamente erradas para mim, quando nem sequer minha professora da primeira série se incomodava com elas. Eu praticava todos os dias, tentando ler textos sem deformá-los numa velocidade cada vez maior, e muitas vezes confundindo as pobres pessoas que tinham de me ouvir fazendo isso. À medida que crescia, outros interesses foram surgindo, e eu desenvolvi outras capacidades, como desenhar. Logo esses desenhos se tornaram meras ilustrações das histórias que surgiam na minha cabeça, e, ao ler as grandes obras inglesas do romantismo, eu soube, definitivamente, que a literatura estaria para sempre na minha vida, e, com sorte, produzida pelas minhas mãos.
          E todo o isolamento que eu descrevi antes, além de gerar uma misantropia mais ou menos casual e uma insegurança disfarçada, acaba auxiliando meus instintos criativos, me transportando, em sua solidão, para o mundo alternativo onde eu escrevo os caminhos e invento os refúgios. E nele permanecerei, não importa quantos anos eu complete, deixando toda a minha amargura em relação à minha época no plano do real, e transferindo mesmo esse plano para meus escritos, confortável no escuro onde meus olhos sensíveis possam observar sem doer.

sábado, 30 de abril de 2011

"Mas rir de tudo é desespero..."

            A minha breve e regular passagem pela juventude da era da informação me leva, diariamente, a reflexões no mínimo estranhas, considerando-se que eu, também, faço parte desta juventude. Não que esta participação não pudesse ser questionada, visto que minha contribuição ou semelhança comportamental não são exatamente muito altas. O que ocorre, de fato, desde o fim da minha infância e egresso na pré-idade adulta, é uma crescente dissociação emocional e isolamento natural da minha personalidade em relação aos outros viventes. Por mais que eu compartilhe de seus rituais de lazer e goste destes, há sempre uma linha fina, porém nada tênue, separando-me do ambiente em geral.
            Uma das coisas que mais me intriga nesse grupo social, ou melhor, nessa fase temporária (ou não) do crescimento humano é a necessidade—talvez somente atual—constante e até mesmo vital de felicidade. Passa-se horas em frente a uma tela de LCD onde vídeos intensamente apelativos e terrivelmente insignificantes são pesquisados e assistidos com o único objetivo de proporcionar ao espectador desocupado em questão uma seqüência de gargalhadas quase que ébrias. Nas rodas de conversa, socializa-se mais aquele que tem a bagagem mais vasta de tal tipo de entretenimento, e a indiferença a esses estímulos decreta a separação social de um indivíduo. Culto a personagens famosos também conta na montagem desse status igualmente popular. Nada mais interessante que ter como ídolo uma suposta celebridade que se veste de carne crua, ou um latino suficientemente atraente fazendo apologia à traição e à promiscuidade. Letras com a profundidade de uma tábua são copiadas e coladas em redes sociais, onde fotos e comunidades são escolhidas conforme a necessidade de exibição da felicidade latente do ser, e imagens jocosas são espalhadas pelo mundo com a função básica de fazer rir. O sexo é banalizado e estimulado, pois de sua variedade, vem também a quantidade, importante, de prazer. O sombrio é isolado e até mesmo a morte sofre a ridicularização.
            Na psicologia freudiana, o superego é responsável pelo controle dos desejos primitivos e violentos do id. Através do entorpecimento e mortificação dele, alcançados pelo consumo de drogas lícitas ou ilícitas, conforme a intensidade de suas aplicações, o superego é anulado e os instintos irracionais do homem são liberados. Numa sociedade que esbanja festa e diversão diariamente, o que há de mais triste para ser constatado é essa necessidade intensa de anulação da moral, da consciência; essa dificuldade aparente de suportar o próprio “juízo”, a própria razão e os próprios sentimentos. A realidade da qual tenta-se escapar com tanto empenho é também a realidade histórica onde ocorrem mais suicídios, maior índice de depressão e mais freqüente consumo de psicotrópicos.
            Mas talvez essa seja, de fato, a natureza humana se manifestando outra vez, como, no passado, esteve estampada até mesmo no livro mais famoso do mundo. Talvez esta necessidade humana de ignorar a realidade através da anulação da consciência seja mais natural do que eu imagino. Por mais parcial que seja a verdade, ou por mais simplória que seja a vida. Quando só se há felicidade, o que não está incluso nela será sempre rejeitado. Seja o conhecimento adquirido por Adão e Eva ao comer da macieira, ou a existência de sentimentos ruins e ocasiões tristes, ou a simples “não-obrigação” de encontrar-se feliz o tempo todo.

terça-feira, 29 de março de 2011

Diferença

             Talvez nós sejamos, sim, diferentes demais. Talvez nós sejamos, sim, como água e óleo, jamais misturando nossas naturezas opostas, jamais modificando o caráter genioso de um para o benefício do outro. Talvez nós sejamos diferentes demais. Talvez nós sejamos diferentes de menos.
            É verdade, a mais absoluta verdade, que você desafia toda a existência anterior à sua, e eu sinceramente encontro muitas dificuldades em tentar lhe entender. É provável até mesmo que eu não o compreenda nem um pouco, possível que toda essa dúzia de meses não tenha sido suficiente para que a minha espécie analise a sua espécie de maneira eficaz. O que importa é que, de fato, somos pouco semelhantes. Extremamente distintos na forma de enxergar e sentir o mundo, ou talvez, realmente, só quem o sinta seja eu. Não busco informações que comprovem o acerto ou o erro de um caráter ou outro. Apenas para você as coisas têm de fazer sentido, e no meu mundo de pouco importa a lógica quando embaçada pelos espectros da emoção. Embora saiba disso, não o considera, a sua espécie, porque pouco há de racional para ser minimamente considerado por você. Talvez, se fossemos uma história fantástica, você seria a máquina, e eu a criança. Você seria o cérebro, e eu o coração. Você seria o inabalável, regenerado; eu seria a carne viva.
            Tais personagens provavelmente mostrar-se-iam opostos e complementares, como as próprias leis da natureza(mas não necessariamente as dos homens)fazem, e um preencheria o vazio da vida do outro, um proveria o outro daquilo que lhe faltava e não era inerente à sua própria espécie. Numa linha de enredo bastante clichê, eu, como a parte humana, traria sentimento e emoção à sua vida acinzentada. Você, como ser pensante e fortemente racional, me ensinaria a controlar minhas sensações e enfrentar melhor as decepções. Duas impressões diferentes surgem na minha cabeça ao imaginar tais histórias. A primeira é a de que, como ser oposto e complementar, não estou, de fato, completando muita coisa; não estou suprindo nenhum coração mecânico de compaixão e amor, nem mostrando ao homem de lata que ele tem, sim, uma alma. A segunda é a de que, no mais irônico dos arranjos, a máquina está me dando mais lições sentimentais do que as que eu lhe ofereço; que a razão, por vezes dolorosa, fria e insensível, esteja se mostrando a maneira mais eficaz para que eu enxergue a emoção verdadeira. Em ambos os casos, meu desempenho é ineficiente, e talvez eu não seja, de fato, a melhor representante humana. Talvez eu seja como seus sistemas zipados, trancados a ferro e fogo numa convicção qualquer, persistentes e inabaláveis em suas idéias não necessariamente corretas, mas sempre suficientemente lógicas. Talvez eu seja uma amostra da humanidade viciada, perdida, e esteja sufocando-me teimosamente em minhas drogas alucinógenas, minhas doses diárias de dor das quais eu não consigo me livrar. Talvez eu seja apenas uma superfície imutável de sensações, uma romântica clássica insistindo em sentir, sentir, e morrer de tanto sentir, em toda a glória que tal tragédia, e só ela, proporcionaria. Talvez eu tenha me acostumado à dor como demonstração mais genuína da paixão, por tê-la sentido tanto quando tão veementemente apaixonada. Talvez eu a use como um dormente prelúdio de uma possível separação. Talvez eu esteja me intoxicando dela, matando cada pedaço de mim que ainda ri, cada sorriso que possa ser chamado de doce. Talvez eu esteja tentando compartilhar de tal veneno com você; ansiando para que seus olhos chorem e você pareça, na dor, sinceramente apaixonado.
            Mas são todas perturbações minhas, estes absurdos que mencionei. São todos fantasmas da minha consciência, e eu seria tremendamente vil se os quisesse transportar a você. Não, talvez não vil, mas terrivelmente imatura. Talvez eu tenha sido machucada demais e formulado centenas de ligações problemáticas no meu cérebro. Talvez eu tenha sido fraca demais para suportar as feridas. Milhões de fantasias sempre valsaram ao meu redor, separando-me da realidade por um véu bonito demais para que eu o rejeitasse. Mas eu não percebi que elas eram deformadas, doentias, cruéis e fabricadas. Eu não percebi que elas eram tão sintéticas quanto a materialidade da máquina. Eu não notei que o homem de lata tinha uma alma, e não a mostrei para ele. Eu ainda não cresci o suficiente para deixar de sentir tanto assim. Eu ainda não rasguei todo o véu que produz a minha irrealidade.

domingo, 6 de março de 2011

Crow in a Cage

            Dentro de uma bolha, eles diriam. Presa por um invólucro diáfano através do qual tudo eu posso enxergar, sem o conforto que a escuridão poderia trazer aos meus olhos já exaustos. Eu toco em sua superfície gelatinosa e a sinto balançar, indo e voltando em pequenos tremores que acabam em mim. Eu não tenho vontade de furá-la, por mais estranho que isso pareça. Dentro da minha bolha há muito mais valor do que o exterior; não há poluição, não há o insalubre. Mas há luz; e com ela se reflete a verdade, e a verdade talvez seja mesmo mais do que eu possa suportar.
            Dentro de uma gaiola, eu diria. Um corvo numa gaiola. Um rouxinol eu seria, se tivesse coragem de cantar; mas nas sombras eu me escondo, nas garras fúnebres de um espírito descorado pelo frio da fadiga. Desfio minhas tranças escuras enquanto repito uma oração para deus nenhum. Desfaço-me em lágrimas ao olhar por entre as grades, desfalecendo num torpor do qual eu jamais anseio despertar. E toda a crença se esvai, e toda a esperança que já tive fecha-se num passado distante demais para ser alcançado. Se ao menos não houvesse o vento, e sem ele minha gaiola, pendurada, não balançasse...Se ao menos houvesse chão, se ao menos houvesse o solo fértil abaixo de mim, ao invés do vão suspenso no qual eu me encontro...
            Mas os ventos seriam meus aliados, se, algum dia, eu houvesse aprendido a voar. E o solo seria nada, pois de nada me importaria a terra quando os céus fossem meu reino. Minhas asas atrofiadas, no entanto, nunca foram usadas, e de pouco adiantaria exercitá-las agora. Do alto, eu enxergo males demais do lado de fora; e de tanto observar, tornei-me estática, e de tanto temer, eu fiz-me presa. Ainda que a brisa me atraia, ainda que a luz me convoque, eu sou, afinal, um corvo numa gaiola.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Imagem

       E então eu vejo sua imagem, perfeitamente nítida como poucos rostos guardados no fundo da minha alma. Talvez ela seja a mais nítida de todas; a mais perfeita, plana, posicionada de forma a fazer com que a luz realce os contornos do rosto que sorri maliciosamente para mim. Não só para mim. A sua imagem olha para os lados mais diversos, encara os horizontes infindáveis de todos os destinos possíveis. A sua imagem perde-se no céu, perscruta a terra, analisa os mares. Ela está virada em várias direções, não só na minha. Por um momento, eu sinto a sua falta. Seus olhos viajantes jamais encontrarão os meus por muito tempo; eles virão, pousarão no porto seguro que lhes ofereço, mesmo com minhas ondas inconstantes e estações tempestuosas, e deitarão ali enquanto o prazer lhe for conveniente, aquele tipo de prazer que só sua amante poderia lhe proporcionar. Eles não discutirão temas vastos, não lerão meus pensamentos mais profundos, não irão se deter por muito tempo. O mundo lhe chama, este mundo para o qual você, na imagem, olha incessantemente. O mundo lhe chama e eu sou só uma parte dele.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Fragmentos de Um Amor Esquecido II

          A alvorada teve o grande benefício de tornar o caminho de volta para casa visível. Algumas pedras escaparam à minha percepção, no entanto, o que provocou alguns cortes a mais em minha pele já descorada. Eu corria, tropeçava, levantava para correr com mais afinco. Fugia de um defunto desperto; fugia de um corpo adormecido—para sempre. Eu não podia prever que os poucos vermes que haviam me tocado pudessem levar uma parte para eles, nem imaginava que servira de alimento enquanto deitada naquela cova. Só sentia um sono profundo; uma dormência mortificante que me compelia a descansar como viva.
            Então, o dia do despertar chegou. Não posso enfeitá-lo com traços romanescos, afirmando que tal manhã nasceu distinta, pois seria mentira. Ela foi surgindo gradualmente, de pouco em pouco, cada vez mais pungente e incontestável. Foi esfriando a temperatura em brisas leves que se transformaram em tempestades de verão, molhando-me delicadamente em cada gota...Ela foi gentil, silenciosa e suave, como se não quisesse ser percebida—como se possuísse uma benevolência que a impedisse de me atacar, que não pretendesse me fazer sofrer. Não mais. Não havia mais o que sofrer. Não havia como.
            Mas logo eu a avistei, quieta e reservada em seu lugar escuro, intacta e pálida como uma morta. A manhã do despertar. A manhã do vazio. A manhã mais insípida e inexpressiva que eu já vira, tão límpida, tão vagarosa, tão...nada. Ela era nada, e que nada—o nada que me sugava sem intenção, que nem me assustava nem me alegrava em sua invisibilidade, que apenas existia em meu peito, apenas mostrava-se a mim, translúcido e impalpável. Um espectro que caminhava na minha direção, que cerrava meus olhos e avivava meu sono, minha conformidade inédita. Ela era estranha, como uma disparidade de sonho: tinha poderes inconscientes, inexplicáveis e imperceptíveis de me calar, e eu os sentia quando suas mãos tépidas cobriam meus lábios, trancando-os. Eu observava quando poderia ser observada; eu falava quando não podia ser ouvida; eu ouvia quando nada havia para escutar. Eu esquecia, aceitava, presa em abnegação impensada. Conformismo cansado. Contestação abandonada, ou ao menos adiada.
            Eu não lia, e se lia tinha dificuldades para absorver mais pesar, ou finalidades puramente alucinógenas. Alucinógenas, não ébrias; não lotadas de êxtase, o êxtase divino do prazer, da dedicação admiradora. Vazias.
            Eu não amava nada.
            E eu só tinha o nada.
            No momento em que percebi isso, algo sussurrou em meu ouvido—não posso dizer se era a manhã, a dama-nada, pois jamais ouvira sua voz—e me contou o que eu não havia reparado: quando deixara o ataúde de meu ex-amado, então um defunto em minhas vistas, um ser descarnado e sem alma que apenas queria se alimentar de minha vida restante, eu deixara também um pedaço de mim. Um pedaço grande e importante de mim, que morrera sem que eu enxergasse, tornando aquela a morada de dois cadáveres. Não fora apenas a memória dele que eu assassinara para reviver, mas também uma parte de mim. Eu matara a mim mesma. Ou ao menos parte de mim.
            E então só sobrara ela, a apática dama-nada, sustentando a memória inconsciente de algo que já não fazia mais parte de mim. Eu enfim a percebera, e ela apenas me avisara a missa que eu esquecera de rezar—o engano que eu cometera ao escolher dar minha vida a ele. Eu acabara realmente o fazendo, e não tinha sentido chorar. Fora apenas culpa minha.
            Mas a dama-nada bem viu, enquanto me envolvia com seus braços etéreos, que não havia sentido em ser humana. Ela mesma era. Ela não chorava, não por seus olhos—mas ela chorou nos meus, tentando corar e transformar-se em algo através de meu pranto. Bem, ela teve sucesso nisso. Tornou-se outra coisa. Não necessariamente algo bom, mas ela não era mais nada.
            Sua face cobriu-se de sombras, suas roupas já não provocavam indiferença—elas doíam, em cada um de uma forma. Ela me abraçou com mais ardor, chorando mais. E suas lágrimas despencavam de meus olhos. A voz grossa, angelical e assustadora ao mesmo tempo, sussurrou o que eu já percebera: ela era a culpa.