domingo, 26 de maio de 2013

Apenas um fantasma



            Ela é apenas um fantasma agora.
            Repito isso para mim mesma, escrevendo-o num papel. Leio, e uma voz imaginária, de segurança e convicção assombrosas, profere cada uma das palavras com sua clareza de telemarketing. Ela é apenas um fantasma agora. Daqueles quietos e resignados, que não tiveram interesse sequer de permanecer sob o mesmo teto que eu, muito calada e superior em suas aparições esporádicas, quando eu declamo minhas reclamações tardias e não recebo qualquer reação. Ela é apenas um fantasma agora, uma névoa tênue e esmirrada, tão pequena quanto era em vida, mas profundamente mais distante. Deveria aproveitar essas visitas inconvenientes e exorcizá-la de vez; e no entanto ela não ficaria por tempo suficiente nem sequer para isso, não suportaria minha materialidade fria de humana pulsante. Atravessou as barreiras etéreas sem qualquer motivo, não um que não estivesse selado num recanto muito obscuro de sua própria psique infantil. E eu nunca compreendi esse segredo, ou talvez, quando uma vez o ouvi sussurrado no meu ouvido, tenha preferido relega-lo ao esquecimento, do jeito que deveria ter feito com ela. Já vi tantos fantasmas, tantas partidas; mas há algo de fascinante e pungente na ida dela, algo que eu jamais saberei por completo ou considerarei deste mundo. E aí também há problema: exatamente por isso fomos separadas em esferas diferentes. Por mais que em algum momento eu tenha chegado a acreditar, na minha maternidade ilusória, que estivéssemos lado a lado.
            Ela não passa de uma alma errante, de um espectro borrado do que um dia eu pensei ser meu. Tinha a impressão de enxergar a mim mesma em seus repentes pueris, sua fragilidade nervosa, sua surpresa e fé e um não sei o que de contos de fadas, daqueles que acabam com uma princesa sozinha. Gritei insultos aos ventos, esperando que seus dragões em pele de cordeiro se revelassem; e consegui livrá-la de um ou outro, até que ela arranjasse algo para completar a estória. Mas ela escreveu o resto sem mim. E continuo a vendo em tantos lugares, mas tenho certeza que ela não me vê em nenhum.
            Talvez eu sinta falta de tudo ao redor dela, mas de seu vulto translúcido, essa coisa que me assombra em sumiço, não tenho mais tanta certeza. Pois às vezes creio que ela, em sua magia fúnebre, tenha roubado um pedaço de mim apenas para que eu vivesse sem ele. Seu rosto rachado de boneca de louça não guarda nenhum segredo puro para mim; ela tem sangue em suas mãos, por mais que pense que só as pessoas de carne e osso possam fazê-lo. E talvez tenha mais que nas minhas, com toda minha nefasta manipulação volúvel.
            Faço-lhe uma prece, uma lamúria silente na noite. Pois àquela que nunca compreendeu o amor, o mais verdadeiro parecerá uma infâmia. E ela é apenas um fantasma agora. 

Um comentário: