sexta-feira, 20 de abril de 2012

A Segunda Morte

Morte. Eu já havia escrito tanto sobre ela. Era realmente curioso que eu jamais a houvesse sentido.
Há dois tipos de morte. Há o tipo figurado, metafórico, irreal, espiritual. Extremamente poético, esse tipo de morte sempre esteve em meus contos. Eu não precisava sentir a verdadeira para saber descrevê-la—essa morte etérea, simbólica, literariamente ideal numa dimensão imaginária. Eu só precisava apurar. Apurar meus sentidos, minha empatia e meus sentimentos: apenas isso era necessário, e ainda assim poucos o conseguiam. Não me sinto inclinada a escrever mais sobre isso. Está em todos os meus textos e imaginações, e não há nada de novo para explorar por enquanto. O primeiro tipo de morte sempre foi muito claro.
Mas há o segundo tipo. A morte orgânica, factual, legítima e atestada. A morte irreversível, silenciosa e vazia do mundo físico.
Eu já havia ouvido falar que me sentiria assim. Dormente. Estranhamente concentrada. Até mesmo produtiva. E muitos poderiam dizer que isso só está acontecendo porque quem, ou o que morreu, na visão deles, não era mesmo muito importante. Talvez realmente exista uma diferença, mas ela não é tão grande assim. De qualquer modo, ela está aqui—a morte física, factual e eterna—e eu jamais poderia imaginá-la tão quieta.
A minha primeira, a minha quase única impressão sobre o segundo tipo de morte é o silêncio. Faz muito sentido, contando com o fato de que eu aguardei no silêncio até que declarassem que o que estava ali, do meu lado, era a morte factual, enquanto todos que estavam presentes soubessem antes, e provavelmente com muito mais barulho. Mas não consigo separar uma coisa da outra. A morte é autossuficiente—ela chega e acaba, mas nunca termina. Diz-se que alguém “morreu” e não há mais qualquer coisa para replicar, nem providências a tomar. A morte é tão solitária que mal percebemos que ela precisa constantemente buscar companhia. E não suportamos que ela leve um de nós, e estamos tão pouco preparados para isso, que não temos qualquer tipo de reação adequada quando acontece. Eu estou teclando tranquilamente e um corpo não anda mais aqui, não mais me afaga com suas patas peludas, e nem nunca mais fará. A morte é tão estranha que parece enganar-me, fazendo com que eu não a odeie—apenas odeie o fato de que ele não vai mais voltar pra casa.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Pássaro Azul

             Terno pássaro azul, permaneces tão belo. Já não via tuas penas há tanto, e não posso dizer, contudo, que mal as recordava; nem uma nuance de teu brilho celeste desgastou-se em meus olhos, nem um formato de tuas plumas livres dissipou-se de meu horizonte, e nem uma nota de teus cantos etéreos distorceu-se ao meu redor. Tua voz ecoou como o vento que balançava, então, minha gaiola enferrujada, arrastou-se nas rajadas que zombavam de mim em liberdade, congelou-se no tempo que judiou de meu sustentáculo, embaralhou-se nas gotas da minha própria tempestade. Tua voz sussurrou meus pecados aos ares, embalou meus prantos insones, repousou ao meu lado vazio. Tua voz encontrou-se com a minha em segredo, conjugou verbos inertes, proferiu palavras sem letras. Tua voz desenhou-se sobre minhas penas negras, afundando-se nelas, e, gritando em claridade o quanto sua presença deformava minha escuridão, permaneceu aqui para sempre; tua voz consumiu-se em meu fôlego, aderindo-se a cada pedaço de meu interior; tua voz é a minha, tão minha quanto o que agora é história, e de histórias eu vivo.
            Terno pássaro azul, tu se lembras daquela chave? Tu sempre voaste tão alto, e assim a encontraste. Cintilante como teus olhos miúdos, da maneira que pássaros negros costumam gostar. Era linda e era tudo, e se encaixava também. Mas meus olhos perscrutaram o chão por tempo demais, e a gaiola se fechou; novamente, e além, até que tuas visitas cessassem e tuas viagens se tornassem teu lar. Se ao menos as minhas asas fossem as tuas, se elas não fossem as fúnebres estruturas de uma ave que nunca aprendeu a voar! Mas lembras que tu jamais tiveste grades, e talvez se veja a tocar as minhas, a dividir um dueto nas tardes mais felizes.
            Por todo este tempo, tua voz não cessou. Por todo este tempo, a canção mais bela jamais deixou de despertar as manhãs, espalhar-se pelo espaço, convidar o encanto. Pobre pássaro negro que sou! Acordar imaginando, todas as manhãs, que tu cantavas para mim! Eu te vejo num galho, agora, e entendo o que deixei do lado de fora. E falho ao observar o quanto as tuas penas celestes combinam, misturando-se às penas purpúreas dela, e o quanto ela mesma guarda tanto de ti em si mesma, como se tua voz houvesse, também, se tornado a dela. E entendo que tornei-me muda, e meus pios disformes, outrora alentados por tua voz, pouco puderam manter-se, presos numa garganta que não cantava para ninguém. Mesmo que minha gaiola tenha caído e suas grades tenham se partido com o impacto, e mesmo que minhas asas atrofiadas tenham desafiado o vento, voando ao seu lado, cabe a mim resistir, afinal, à terrível tormenta que me assola sem barreiras.
            Sinto o vento me empurrar, pássaro azul, e já percorri léguas e mares. E tua voz não cessou.