São
quatro horas da manhã. Falta tão pouco para que eu tenha de acordar que meu
corpo dói só ao pensamento. Já li o suficiente de um livro brilhante que me
obriga, arrogante que é, a saber francês, e preguiçosa do jeito que sou, imóvel
em meu canto reflexivo, eu o abandono sobre a cama que sustenta minha falta de
vontade absoluta; não tenho o ímpeto nem sequer de digitar as tais palavras no
tradutor automático, e escovar os dentes parece a missão mais dolorosa já
imposta a um ser humano. Nem sei o que estou fazendo—ou sei, e isso é mesmo
terrível. Escrevendo sobre nada, despejando as palavras sobre a tela branca e
reluzente do monitor sem qualquer intenção, qualquer estímulo que não seja o de
simplesmente escrever, deixar que a voz inaudível dentro de minha mente
finalmente encontre algo que suporte sua tagarelice. O tal livro, especialmente
editado para pessoas cultas, imagino—qualquer outro público gostaria, e eu
então comprovo que não sou culta, de uma pequena nota de rodapé traduzindo os
insistentes dizeres franceses—me inspira de uma maneira que apenas os grandes
clássicos conseguem, despertando a estridente, sedutora moça escritora que
habita o interior de meu crânio, e eu tenho de atender aos pedidos mimados
dessa raríssima visita. Quando a escuto, é como se eu entendesse, tristemente,
que toda a minha atividade literária não passa de uma sombra dela, uma imitação
natural que jamais consegue se igualar ao original, uma coisa distorcida e
translúcida que só consegue adquirir uns contornos nítidos sob o sol mais
generoso. Sou uma pseudoescritora fúnebre; uma lunática fracassada que tenta ressuscitar
o espírito daquela amada que nunca vem, uma bruxa que, ao contemplar a beleza
de seu ídolo, traz à vida somente uma versão piorada—e muito mais trabalhosa—dele.
Tenho esse orgulho, ao menos, ou talvez não. Iria me enganar dizendo que me
mantenho firme ao meu estilo sombrio, quase mórbido, também como imitadora de
mim mesma. Mas é ela que escreve agora, a Maria esporádica que aparece nas
madrugadas para roubar o sono que empurra as pálpebras sonolentas da Maria
rotineira para baixo.
Fecho
uma janela deste terrível mirante virtual, e encontro-me com os olhos dele,
castanhos, puxados, penetrantes e impenetráveis. A sua beleza, sua calidez
imaginária tão pobremente descrita em minhas tentativas de livro, cobra-me e
atiça-me; ele é o retrato do que tento desenhar porcamente em tantas noites mal
dormidas, convidando-me a tentar—e fracassar—outra vez, pelo bem de sua própria
existência. Eu quero escrever, quero tanto, mas tanto, que quase nada escrevo. Os sonhos dela, a Maria escritora
que mais parece uma assombração, assustando-me nos momentos mais indesejados e
pintando o espaço sob meus olhos de matizes cada vez mais fortes, são grandes
demais para que a outra—ai de mim, eu mesma—consiga sonhá-los. Em sua
luminescência de entidade, a Maria escritora não tolera ofensas; e o que os
dedos pesados de uma imitadora morosa poderiam oferecer, se não a ofensa?
Escrever é doloroso. Escrever não é democrático. Parem logo de mentir, de dizer
que escrever é para todos. Nem mesmo esta imitadora acreditaria nisso. Um
escritor—pobre infeliz—é uma versão obscura de Deus. Se diverte, sofre, se
empenha em criar mundos e imagens e criaturas que, dotados de vida própria,
simbolismo e sentido, costumam prosperar mais que ele mesmo. O prazer de um
livro pronto, por mais que eu não o tenha conseguido sentir até hoje, não é nem
de longe um dos prazeres mais absolutos da vida. É, pelo contrário, doloroso.
Um escritor, um desses grandes, melhores escritores, um dia se apaixonou tanto
por um livro que decidiu dedicar toda a sua vida a reencontrar um espectro no
mínimo distante de seu amor, e qualquer volume barato a sair de suas mãos
simbolizará apenas um fracasso.
E
então eu saboreio o fel que minha própria relutância produz. O garoto de olhos
castanhos não consegue me convencer. Eu o amo, imperfeita, pobre criatura que é
sob meus dedos. Mas prefiro deixar que cuide de sua vida congelada enquanto eu
supero minha própria imperfeição. Meus próprios anseios frustrados. Minha
auto-decepção pela vergonhosa, estrondosa e inexistente vontade de terminar a
estória—eu diria história, mas a gramática não julga meus contos tão reais
quanto eu mesma—que eu comecei, o livro que eu jurei publicar, o doloroso e
cansativo aprendizado a que me entreguei desde que a oportunidade surgiu. Mãe,
mundo e professores, eu não escolheria ser escritora se pudesse. Algumas linhas
acima, admiti que não acredito que escrever seja para todos. Mas esqueci de
dizer que essas pobres criaturas atormentadas que coabitam este barco
escorregadio no qual acordei após a tempestade, são todas imitadoras, como eu;
e as vozes em nossas cabeças, com suas palavras distintas e ares sedutores, seus
sentidos de vida e causas profundas, são altas demais para que as ignoremos.