segunda-feira, 23 de julho de 2012

Ao mundo: sobre escrever




São quatro horas da manhã. Falta tão pouco para que eu tenha de acordar que meu corpo dói só ao pensamento. Já li o suficiente de um livro brilhante que me obriga, arrogante que é, a saber francês, e preguiçosa do jeito que sou, imóvel em meu canto reflexivo, eu o abandono sobre a cama que sustenta minha falta de vontade absoluta; não tenho o ímpeto nem sequer de digitar as tais palavras no tradutor automático, e escovar os dentes parece a missão mais dolorosa já imposta a um ser humano. Nem sei o que estou fazendo—ou sei, e isso é mesmo terrível. Escrevendo sobre nada, despejando as palavras sobre a tela branca e reluzente do monitor sem qualquer intenção, qualquer estímulo que não seja o de simplesmente escrever, deixar que a voz inaudível dentro de minha mente finalmente encontre algo que suporte sua tagarelice. O tal livro, especialmente editado para pessoas cultas, imagino—qualquer outro público gostaria, e eu então comprovo que não sou culta, de uma pequena nota de rodapé traduzindo os insistentes dizeres franceses—me inspira de uma maneira que apenas os grandes clássicos conseguem, despertando a estridente, sedutora moça escritora que habita o interior de meu crânio, e eu tenho de atender aos pedidos mimados dessa raríssima visita. Quando a escuto, é como se eu entendesse, tristemente, que toda a minha atividade literária não passa de uma sombra dela, uma imitação natural que jamais consegue se igualar ao original, uma coisa distorcida e translúcida que só consegue adquirir uns contornos nítidos sob o sol mais generoso. Sou uma pseudoescritora fúnebre; uma lunática fracassada que tenta ressuscitar o espírito daquela amada que nunca vem, uma bruxa que, ao contemplar a beleza de seu ídolo, traz à vida somente uma versão piorada—e muito mais trabalhosa—dele. Tenho esse orgulho, ao menos, ou talvez não. Iria me enganar dizendo que me mantenho firme ao meu estilo sombrio, quase mórbido, também como imitadora de mim mesma. Mas é ela que escreve agora, a Maria esporádica que aparece nas madrugadas para roubar o sono que empurra as pálpebras sonolentas da Maria rotineira para baixo.
Fecho uma janela deste terrível mirante virtual, e encontro-me com os olhos dele, castanhos, puxados, penetrantes e impenetráveis. A sua beleza, sua calidez imaginária tão pobremente descrita em minhas tentativas de livro, cobra-me e atiça-me; ele é o retrato do que tento desenhar porcamente em tantas noites mal dormidas, convidando-me a tentar—e fracassar—outra vez, pelo bem de sua própria existência. Eu quero escrever, quero tanto, mas tanto, que quase nada escrevo. Os sonhos dela, a Maria escritora que mais parece uma assombração, assustando-me nos momentos mais indesejados e pintando o espaço sob meus olhos de matizes cada vez mais fortes, são grandes demais para que a outra—ai de mim, eu mesma—consiga sonhá-los. Em sua luminescência de entidade, a Maria escritora não tolera ofensas; e o que os dedos pesados de uma imitadora morosa poderiam oferecer, se não a ofensa? Escrever é doloroso. Escrever não é democrático. Parem logo de mentir, de dizer que escrever é para todos. Nem mesmo esta imitadora acreditaria nisso. Um escritor—pobre infeliz—é uma versão obscura de Deus. Se diverte, sofre, se empenha em criar mundos e imagens e criaturas que, dotados de vida própria, simbolismo e sentido, costumam prosperar mais que ele mesmo. O prazer de um livro pronto, por mais que eu não o tenha conseguido sentir até hoje, não é nem de longe um dos prazeres mais absolutos da vida. É, pelo contrário, doloroso. Um escritor, um desses grandes, melhores escritores, um dia se apaixonou tanto por um livro que decidiu dedicar toda a sua vida a reencontrar um espectro no mínimo distante de seu amor, e qualquer volume barato a sair de suas mãos simbolizará apenas um fracasso.
E então eu saboreio o fel que minha própria relutância produz. O garoto de olhos castanhos não consegue me convencer. Eu o amo, imperfeita, pobre criatura que é sob meus dedos. Mas prefiro deixar que cuide de sua vida congelada enquanto eu supero minha própria imperfeição. Meus próprios anseios frustrados. Minha auto-decepção pela vergonhosa, estrondosa e inexistente vontade de terminar a estória—eu diria história, mas a gramática não julga meus contos tão reais quanto eu mesma—que eu comecei, o livro que eu jurei publicar, o doloroso e cansativo aprendizado a que me entreguei desde que a oportunidade surgiu. Mãe, mundo e professores, eu não escolheria ser escritora se pudesse. Algumas linhas acima, admiti que não acredito que escrever seja para todos. Mas esqueci de dizer que essas pobres criaturas atormentadas que coabitam este barco escorregadio no qual acordei após a tempestade, são todas imitadoras, como eu; e as vozes em nossas cabeças, com suas palavras distintas e ares sedutores, seus sentidos de vida e causas profundas, são altas demais para que as ignoremos.