sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Tridimensional


                Papel. Débil e imóvel papel. Todos são apenas papel. Dissolvendo-se no ar, queimando e rompendo-se conforme o conteúdo lhes toca, pisa, amassa. Não há nada além de papel. Nada além dos traços planos que desenham rostos bidimensionais, corpos bidimensionais, seres bidimensionais. Nada além da folha esticada sobre a parede, nada além da proporção perfeita e dos floreios artísticos, nada além de rascunhos e ilustrações ilusórias, expressões simuladas, faces de mentira. Não há nada tão leve quanto o papel, e nisto há algo pesado: basta um risco profundo para que ele se rasgue, e aqui só há retalhos. Para mim só há retalhos.
                Toco a superfície com meus dedos tridimensionais, admirando sua beleza. Aqui, do lado de fora, minha forma pesada e meus ossos trêmulos são apenas solitários, estranhos, exclusos. Gostaria de ser um desenho, e de, como todos os outros, sorrir um sorriso simétrico e plano. Gostaria de tornar-me estática, incapaz de evoluir, simplória e rasa como o rascunho de um iniciante. Gostaria de ser tudo o que não sou e não posso ser, presa do lado de fora, envolta por esta carne dolorida e inchada, móvel e verdadeira.
                Só há a superfície a preencher, e que felicidade! Se estivesse oca não poderia viver, e ainda assim não posso, cheia de coisas pulsantes, vivas e mortas, cheia de dores latentes e dormências instáveis, tridimensionalidade e trevas, abismos profundos e segredos que nem eu mesma sei. Presa ao conteúdo, sonho com as mil possibilidades de uma folha em branco; mas meus dedos se cortam ao mais vacilante movimento, e meu corpo é pesado demais e apenas desmancha, rompe, dissolve-a, deixando-me só com os retalhos e o lado de fora. 

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Após o vazio



             Um dia, ela cansou do nada.
            Cansou das quatro paredes pálidas. Cansou do incômodo silêncio do quarto. Cansou do contato gélido da superfície inexoravelmente reta em que encostava as costas curvadas. Cansou do banco de gesso que colava-se à parede numa quase camuflagem branca. Cansou do vazio.
            A porta não abria. Ela tinha certeza que não era um problema ordinário; dessa vez não precisaria encontrar a chave. Alguma coisa maior do que ela, maior do que o quarto, maior do que todo aquele lugar emperrara a fechadura. Não era sua culpa. Havia alguma maneira de sair dali, mas ainda não descobrira. Até que cansou disso também. E o cansaço a fez erguer-se, esticar a coluna curvada e esfregar as longas unhas sobre a parede. Ao contrário do que imaginava, suas garras afiadas não eram tão frágeis quanto pareciam. Arrancou a tinta, depois a massa, e então sobrara apenas uma fina camada de um não-sei-o-quê translúcido num ínfimo buraco. Ela encostou a face de porcelana sobre a parede, ainda maior do que ela, ainda pálida e gélida, mas não mais inteira. Uma mancha luminosa movia-se lá fora, aquecendo-a com raios de sol que ela não via há tempos. Não conseguia divisar uma forma distinta; ainda havia aquela couraça diáfana a escondendo do exterior. Pensou em rasga-la com a unha rachada, rompendo-a na primeira pressão do dedo, convidando o vento e o orvalho, o aroma e o que mais de sensorial ela pudesse captar por aquela mísera rachadura na parede, revigorando-se antes de continuar a quebra-la. Hesitou. O calor que sentia poderia vir de um campo ensolarado ou de uma labareda. O lado de fora poderia ser seu fim ou o seu começo. Mas estava cheio. Cheio de algo bom ou ruim. E ali, entre as quatro barras de concreto barato, só havia o mais completo vazio.
            Posicionou as garras. Nem mesmo a própria roupa que usava tinha cor, e gostaria tanto de sentir os olhos arderem com o contraste. Não havia nada ali dentro. Mas ela não estava vazia. Melhor que sentisse dor a ficar dormente.
            Então sentiu algo. E nenhum pedaço da parede fora rompido, e no entanto ela tinha certeza que o vento batera sobre seus ombros. Virou-se, um misto de choque e incompreensão fazendo-a calcular mentalmente as probabilidades de vento daquela parte do cubo, da porta sempre fechada. E nada fez sentido quando ela o viu.
            Ela o vira muitas vezes trancada naquele quarto. Talvez mais do que quando gastara o tempo na antiga gaiola, recebendo visitas suas e ignorando a chave quando mais quisera libertar-se. Acabara voando sozinha para longe, mas chegara apenas ali. Não via ninguém de fato, ninguém real, físico e palpável, há muito tempo. Mas definitivamente o vira. Uma assombração persistente que fazia as paredes rangerem durante a madrugada, aparecendo vez ou outra e perturbando o seu sono, sua paz, sua imobilidade silenciosa. Nunca fora o tipo de fantasma atrevido que batia portas ou tocava suas costas no escuro. Até porque só havia uma porta, uma porta devidamente trancada no quarto. Mas ele a escancarara, e o pedaço de madeira branca parecia um mero resto vagabundo consumido por cupins, caído no canto do cubículo como uma vítima corrompida.
Ele não disse nada. Ela não soube se deveria se sentir assustada ou feliz. Ele estava diferente. Agora, ele era tão turvo quanto o que havia lá fora. O calor que sempre viera dele poderia queimá-la ou aquecê-la. Encostou-se sobre a parede, esperando que algo acontecesse, que algo começasse a fazer sentido. Ele apenas a encarava. O silêncio do qual ela cansara renovou-se em algo totalmente diferente, mais escandaloso do que milhares de buzinas, mais estrondoso do que uma tempestade de raios. Seu pássaro azul não cantava mais, mas ela o queria para si sob a mais pesada promessa de silêncio. Deslizou, prostrando-se no chão enquanto permanecia o fitando, esperando, esperando, por tanto e tanto tempo. Não precisaria mais quebrar a parede. Agora a porta que tanto tentara arrombar estava destruída, e no entanto nada daquilo parecia real, e logo acordaria igualmente presa. Mas estava presa agora também; presa nos olhos dele, presa na espera muda que a afastara do sol. E aquilo parecia doer mais do que o contato áspero das grades enferrujadas da antiga gaiola.

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Carta para a boneca da floresta




            As teias de aranha na janela não me assustam mais. O tempo se encarregou de deixa-las ali, frágeis e quebradiças, persistentes e invisíveis, discretas em sua própria magia que leva a todos os cantos. O tempo se encarregou de deixar meus ouvidos doloridos descansarem, e minhas tenras feridas são hoje apenas marcas sobre a pele desbotada, desenhos eternos enfeitando os braços que um dia se jogaram ao enlace do que era mais terno e mais ácido. O tempo me envolveu em suas bandagens pálidas, paralisando-me em meu curso acidentado, lavando meus pés ensanguentados e dissolvendo a dor em minhas lágrimas, e quantas, quantas lágrimas. O tempo afastou as ervas daninhas de meu palácio, empurrou-me para sua torre mais alta, convocou o silêncio e as aranhas e o nada para que eu tivesse companhia.
            Mas hoje a canção voltou a tocar. E diante do lúgubre som do piano eu lembrei da sua imagem.
            Pensei que dividíamos a mesma coleção de bonecas quebradas, o mesmo palácio de ternas assombrações. Mas as aranhas são as únicas aqui, caminhando sobre os pedaços de louça no chão, examinando os fragmentos minúsculos que arranharam meus pés, subindo e descendo e voltando, lépidas e constantes como são. Pensei que minha boneca favorita fosse a testemunha mais compreensiva de meus próprios pecados, que os cabelos que eu penteara com tanto empenho não fossem me abandonar em minha gaiola, jogando-se na tal floresta com a qual eu jamais havia sonhado. Comparava nossas palavras e desenhos, nossos turvos rascunhos de sonhos estranhos demais, iguais demais, nossos demais. E enxergava nos seus olhos vítreos de brinquedo novo o que eu mesma já fora um dia, e deixava que minhas asas negras a envolvessem, protegendo-a do que pudesse arranhar sua porcelana intacta.
            Mas o tempo a levou também. E eu jamais soube o porquê. Minhas correntes pesadas demais ainda não haviam sido quebradas, e meu coração ainda sofria, extraído um pedaço enorme dele, o maior dos amores e dos pecados. E logo então minha boneca quebrara-se sobre o chão, arrastando-se para os espinhos e trevas da floresta, deixando-me só e sem a canção.
            E eu jamais soube o porquê.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Ao mundo: sobre escrever




São quatro horas da manhã. Falta tão pouco para que eu tenha de acordar que meu corpo dói só ao pensamento. Já li o suficiente de um livro brilhante que me obriga, arrogante que é, a saber francês, e preguiçosa do jeito que sou, imóvel em meu canto reflexivo, eu o abandono sobre a cama que sustenta minha falta de vontade absoluta; não tenho o ímpeto nem sequer de digitar as tais palavras no tradutor automático, e escovar os dentes parece a missão mais dolorosa já imposta a um ser humano. Nem sei o que estou fazendo—ou sei, e isso é mesmo terrível. Escrevendo sobre nada, despejando as palavras sobre a tela branca e reluzente do monitor sem qualquer intenção, qualquer estímulo que não seja o de simplesmente escrever, deixar que a voz inaudível dentro de minha mente finalmente encontre algo que suporte sua tagarelice. O tal livro, especialmente editado para pessoas cultas, imagino—qualquer outro público gostaria, e eu então comprovo que não sou culta, de uma pequena nota de rodapé traduzindo os insistentes dizeres franceses—me inspira de uma maneira que apenas os grandes clássicos conseguem, despertando a estridente, sedutora moça escritora que habita o interior de meu crânio, e eu tenho de atender aos pedidos mimados dessa raríssima visita. Quando a escuto, é como se eu entendesse, tristemente, que toda a minha atividade literária não passa de uma sombra dela, uma imitação natural que jamais consegue se igualar ao original, uma coisa distorcida e translúcida que só consegue adquirir uns contornos nítidos sob o sol mais generoso. Sou uma pseudoescritora fúnebre; uma lunática fracassada que tenta ressuscitar o espírito daquela amada que nunca vem, uma bruxa que, ao contemplar a beleza de seu ídolo, traz à vida somente uma versão piorada—e muito mais trabalhosa—dele. Tenho esse orgulho, ao menos, ou talvez não. Iria me enganar dizendo que me mantenho firme ao meu estilo sombrio, quase mórbido, também como imitadora de mim mesma. Mas é ela que escreve agora, a Maria esporádica que aparece nas madrugadas para roubar o sono que empurra as pálpebras sonolentas da Maria rotineira para baixo.
Fecho uma janela deste terrível mirante virtual, e encontro-me com os olhos dele, castanhos, puxados, penetrantes e impenetráveis. A sua beleza, sua calidez imaginária tão pobremente descrita em minhas tentativas de livro, cobra-me e atiça-me; ele é o retrato do que tento desenhar porcamente em tantas noites mal dormidas, convidando-me a tentar—e fracassar—outra vez, pelo bem de sua própria existência. Eu quero escrever, quero tanto, mas tanto, que quase nada escrevo. Os sonhos dela, a Maria escritora que mais parece uma assombração, assustando-me nos momentos mais indesejados e pintando o espaço sob meus olhos de matizes cada vez mais fortes, são grandes demais para que a outra—ai de mim, eu mesma—consiga sonhá-los. Em sua luminescência de entidade, a Maria escritora não tolera ofensas; e o que os dedos pesados de uma imitadora morosa poderiam oferecer, se não a ofensa? Escrever é doloroso. Escrever não é democrático. Parem logo de mentir, de dizer que escrever é para todos. Nem mesmo esta imitadora acreditaria nisso. Um escritor—pobre infeliz—é uma versão obscura de Deus. Se diverte, sofre, se empenha em criar mundos e imagens e criaturas que, dotados de vida própria, simbolismo e sentido, costumam prosperar mais que ele mesmo. O prazer de um livro pronto, por mais que eu não o tenha conseguido sentir até hoje, não é nem de longe um dos prazeres mais absolutos da vida. É, pelo contrário, doloroso. Um escritor, um desses grandes, melhores escritores, um dia se apaixonou tanto por um livro que decidiu dedicar toda a sua vida a reencontrar um espectro no mínimo distante de seu amor, e qualquer volume barato a sair de suas mãos simbolizará apenas um fracasso.
E então eu saboreio o fel que minha própria relutância produz. O garoto de olhos castanhos não consegue me convencer. Eu o amo, imperfeita, pobre criatura que é sob meus dedos. Mas prefiro deixar que cuide de sua vida congelada enquanto eu supero minha própria imperfeição. Meus próprios anseios frustrados. Minha auto-decepção pela vergonhosa, estrondosa e inexistente vontade de terminar a estória—eu diria história, mas a gramática não julga meus contos tão reais quanto eu mesma—que eu comecei, o livro que eu jurei publicar, o doloroso e cansativo aprendizado a que me entreguei desde que a oportunidade surgiu. Mãe, mundo e professores, eu não escolheria ser escritora se pudesse. Algumas linhas acima, admiti que não acredito que escrever seja para todos. Mas esqueci de dizer que essas pobres criaturas atormentadas que coabitam este barco escorregadio no qual acordei após a tempestade, são todas imitadoras, como eu; e as vozes em nossas cabeças, com suas palavras distintas e ares sedutores, seus sentidos de vida e causas profundas, são altas demais para que as ignoremos.