terça-feira, 29 de março de 2011

Diferença

             Talvez nós sejamos, sim, diferentes demais. Talvez nós sejamos, sim, como água e óleo, jamais misturando nossas naturezas opostas, jamais modificando o caráter genioso de um para o benefício do outro. Talvez nós sejamos diferentes demais. Talvez nós sejamos diferentes de menos.
            É verdade, a mais absoluta verdade, que você desafia toda a existência anterior à sua, e eu sinceramente encontro muitas dificuldades em tentar lhe entender. É provável até mesmo que eu não o compreenda nem um pouco, possível que toda essa dúzia de meses não tenha sido suficiente para que a minha espécie analise a sua espécie de maneira eficaz. O que importa é que, de fato, somos pouco semelhantes. Extremamente distintos na forma de enxergar e sentir o mundo, ou talvez, realmente, só quem o sinta seja eu. Não busco informações que comprovem o acerto ou o erro de um caráter ou outro. Apenas para você as coisas têm de fazer sentido, e no meu mundo de pouco importa a lógica quando embaçada pelos espectros da emoção. Embora saiba disso, não o considera, a sua espécie, porque pouco há de racional para ser minimamente considerado por você. Talvez, se fossemos uma história fantástica, você seria a máquina, e eu a criança. Você seria o cérebro, e eu o coração. Você seria o inabalável, regenerado; eu seria a carne viva.
            Tais personagens provavelmente mostrar-se-iam opostos e complementares, como as próprias leis da natureza(mas não necessariamente as dos homens)fazem, e um preencheria o vazio da vida do outro, um proveria o outro daquilo que lhe faltava e não era inerente à sua própria espécie. Numa linha de enredo bastante clichê, eu, como a parte humana, traria sentimento e emoção à sua vida acinzentada. Você, como ser pensante e fortemente racional, me ensinaria a controlar minhas sensações e enfrentar melhor as decepções. Duas impressões diferentes surgem na minha cabeça ao imaginar tais histórias. A primeira é a de que, como ser oposto e complementar, não estou, de fato, completando muita coisa; não estou suprindo nenhum coração mecânico de compaixão e amor, nem mostrando ao homem de lata que ele tem, sim, uma alma. A segunda é a de que, no mais irônico dos arranjos, a máquina está me dando mais lições sentimentais do que as que eu lhe ofereço; que a razão, por vezes dolorosa, fria e insensível, esteja se mostrando a maneira mais eficaz para que eu enxergue a emoção verdadeira. Em ambos os casos, meu desempenho é ineficiente, e talvez eu não seja, de fato, a melhor representante humana. Talvez eu seja como seus sistemas zipados, trancados a ferro e fogo numa convicção qualquer, persistentes e inabaláveis em suas idéias não necessariamente corretas, mas sempre suficientemente lógicas. Talvez eu seja uma amostra da humanidade viciada, perdida, e esteja sufocando-me teimosamente em minhas drogas alucinógenas, minhas doses diárias de dor das quais eu não consigo me livrar. Talvez eu seja apenas uma superfície imutável de sensações, uma romântica clássica insistindo em sentir, sentir, e morrer de tanto sentir, em toda a glória que tal tragédia, e só ela, proporcionaria. Talvez eu tenha me acostumado à dor como demonstração mais genuína da paixão, por tê-la sentido tanto quando tão veementemente apaixonada. Talvez eu a use como um dormente prelúdio de uma possível separação. Talvez eu esteja me intoxicando dela, matando cada pedaço de mim que ainda ri, cada sorriso que possa ser chamado de doce. Talvez eu esteja tentando compartilhar de tal veneno com você; ansiando para que seus olhos chorem e você pareça, na dor, sinceramente apaixonado.
            Mas são todas perturbações minhas, estes absurdos que mencionei. São todos fantasmas da minha consciência, e eu seria tremendamente vil se os quisesse transportar a você. Não, talvez não vil, mas terrivelmente imatura. Talvez eu tenha sido machucada demais e formulado centenas de ligações problemáticas no meu cérebro. Talvez eu tenha sido fraca demais para suportar as feridas. Milhões de fantasias sempre valsaram ao meu redor, separando-me da realidade por um véu bonito demais para que eu o rejeitasse. Mas eu não percebi que elas eram deformadas, doentias, cruéis e fabricadas. Eu não percebi que elas eram tão sintéticas quanto a materialidade da máquina. Eu não notei que o homem de lata tinha uma alma, e não a mostrei para ele. Eu ainda não cresci o suficiente para deixar de sentir tanto assim. Eu ainda não rasguei todo o véu que produz a minha irrealidade.

domingo, 6 de março de 2011

Crow in a Cage

            Dentro de uma bolha, eles diriam. Presa por um invólucro diáfano através do qual tudo eu posso enxergar, sem o conforto que a escuridão poderia trazer aos meus olhos já exaustos. Eu toco em sua superfície gelatinosa e a sinto balançar, indo e voltando em pequenos tremores que acabam em mim. Eu não tenho vontade de furá-la, por mais estranho que isso pareça. Dentro da minha bolha há muito mais valor do que o exterior; não há poluição, não há o insalubre. Mas há luz; e com ela se reflete a verdade, e a verdade talvez seja mesmo mais do que eu possa suportar.
            Dentro de uma gaiola, eu diria. Um corvo numa gaiola. Um rouxinol eu seria, se tivesse coragem de cantar; mas nas sombras eu me escondo, nas garras fúnebres de um espírito descorado pelo frio da fadiga. Desfio minhas tranças escuras enquanto repito uma oração para deus nenhum. Desfaço-me em lágrimas ao olhar por entre as grades, desfalecendo num torpor do qual eu jamais anseio despertar. E toda a crença se esvai, e toda a esperança que já tive fecha-se num passado distante demais para ser alcançado. Se ao menos não houvesse o vento, e sem ele minha gaiola, pendurada, não balançasse...Se ao menos houvesse chão, se ao menos houvesse o solo fértil abaixo de mim, ao invés do vão suspenso no qual eu me encontro...
            Mas os ventos seriam meus aliados, se, algum dia, eu houvesse aprendido a voar. E o solo seria nada, pois de nada me importaria a terra quando os céus fossem meu reino. Minhas asas atrofiadas, no entanto, nunca foram usadas, e de pouco adiantaria exercitá-las agora. Do alto, eu enxergo males demais do lado de fora; e de tanto observar, tornei-me estática, e de tanto temer, eu fiz-me presa. Ainda que a brisa me atraia, ainda que a luz me convoque, eu sou, afinal, um corvo numa gaiola.