A alvorada teve o grande benefício de tornar o caminho de volta para casa visível. Algumas pedras escaparam à minha percepção, no entanto, o que provocou alguns cortes a mais em minha pele já descorada. Eu corria, tropeçava, levantava para correr com mais afinco. Fugia de um defunto desperto; fugia de um corpo adormecido—para sempre. Eu não podia prever que os poucos vermes que haviam me tocado pudessem levar uma parte para eles, nem imaginava que servira de alimento enquanto deitada naquela cova. Só sentia um sono profundo; uma dormência mortificante que me compelia a descansar como viva.
Então, o dia do despertar chegou. Não posso enfeitá-lo com traços romanescos, afirmando que tal manhã nasceu distinta, pois seria mentira. Ela foi surgindo gradualmente, de pouco em pouco, cada vez mais pungente e incontestável. Foi esfriando a temperatura em brisas leves que se transformaram em tempestades de verão, molhando-me delicadamente em cada gota...Ela foi gentil, silenciosa e suave, como se não quisesse ser percebida—como se possuísse uma benevolência que a impedisse de me atacar, que não pretendesse me fazer sofrer. Não mais. Não havia mais o que sofrer. Não havia como.
Mas logo eu a avistei, quieta e reservada em seu lugar escuro, intacta e pálida como uma morta. A manhã do despertar. A manhã do vazio. A manhã mais insípida e inexpressiva que eu já vira, tão límpida, tão vagarosa, tão...nada. Ela era nada, e que nada—o nada que me sugava sem intenção, que nem me assustava nem me alegrava em sua invisibilidade, que apenas existia em meu peito, apenas mostrava-se a mim, translúcido e impalpável. Um espectro que caminhava na minha direção, que cerrava meus olhos e avivava meu sono, minha conformidade inédita. Ela era estranha, como uma disparidade de sonho: tinha poderes inconscientes, inexplicáveis e imperceptíveis de me calar, e eu os sentia quando suas mãos tépidas cobriam meus lábios, trancando-os. Eu observava quando poderia ser observada; eu falava quando não podia ser ouvida; eu ouvia quando nada havia para escutar. Eu esquecia, aceitava, presa em abnegação impensada. Conformismo cansado. Contestação abandonada, ou ao menos adiada.
Eu não lia, e se lia tinha dificuldades para absorver mais pesar, ou finalidades puramente alucinógenas. Alucinógenas, não ébrias; não lotadas de êxtase, o êxtase divino do prazer, da dedicação admiradora. Vazias.
Eu não amava nada.
E eu só tinha o nada.
No momento em que percebi isso, algo sussurrou em meu ouvido—não posso dizer se era a manhã, a dama-nada, pois jamais ouvira sua voz—e me contou o que eu não havia reparado: quando deixara o ataúde de meu ex-amado, então um defunto em minhas vistas, um ser descarnado e sem alma que apenas queria se alimentar de minha vida restante, eu deixara também um pedaço de mim. Um pedaço grande e importante de mim, que morrera sem que eu enxergasse, tornando aquela a morada de dois cadáveres. Não fora apenas a memória dele que eu assassinara para reviver, mas também uma parte de mim. Eu matara a mim mesma. Ou ao menos parte de mim.
E então só sobrara ela, a apática dama-nada, sustentando a memória inconsciente de algo que já não fazia mais parte de mim. Eu enfim a percebera, e ela apenas me avisara a missa que eu esquecera de rezar—o engano que eu cometera ao escolher dar minha vida a ele. Eu acabara realmente o fazendo, e não tinha sentido chorar. Fora apenas culpa minha.
Mas a dama-nada bem viu, enquanto me envolvia com seus braços etéreos, que não havia sentido em ser humana. Ela mesma era. Ela não chorava, não por seus olhos—mas ela chorou nos meus, tentando corar e transformar-se em algo através de meu pranto. Bem, ela teve sucesso nisso. Tornou-se outra coisa. Não necessariamente algo bom, mas ela não era mais nada.
Sua face cobriu-se de sombras, suas roupas já não provocavam indiferença—elas doíam, em cada um de uma forma. Ela me abraçou com mais ardor, chorando mais. E suas lágrimas despencavam de meus olhos. A voz grossa, angelical e assustadora ao mesmo tempo, sussurrou o que eu já percebera: ela era a culpa.
Bem, eu queria passar longe de aludir a A. Poe, mas com este texto e essa sua idéia não posso deixar de dizer que teu estilo lembra muito Poe!
ResponderExcluirsobre o texto, a Culpa é irmã do Remorso, este que é um verme lento que nos rói por dentro, bem diferente do efêmero Arrependimento.
outros parabéns, abraço
ola moça, passando para conhecer o blog!
ResponderExcluirgostaria que conhecesse meu blog de arte obscura http://artegrotesca.blogspot.com
boa semana, bjos!