quarta-feira, 10 de novembro de 2010

A Boneca na Gaiola

Jogada no bolor do sofá amarelado, ela tecia tranças em seu cabelo de seda. As mechas, diáfanas e alvas, iam ora e outra cair sobre seu rosto molhado, e refletiam em seus olhos intumescidos a leveza de cada queda. Ela, no entanto, não podia concordar. Quedas irrompiam com enormes pesares, e todo o ardor de uma perda vertiginosa pungia-lhe a alma naquele momento. Aquele morto momento de domingo, onde a névoa tingia o céu de maus agouros, vinha lhe trazer as mais dolorosas ponderações, reservando à sua consciência o duplo dever de carrasco e conselheiro. Isolada do mundo pelas grades polidas de sua gaiola, a mesma gaiola que ela tanto repudiara no passado, ela passava a imaginar, novamente, milhares de reinos distantes e inatingíveis, os quais qualquer carruagem ou trem jamais poderia pretender alcançar. Aquelas grades, por mais rígidas e frias, não representavam nenhuma barreira real para seus devaneios. E descobriu que podia voar para muito além daquele tranqüilo recinto, batendo suas asas de penas intocadas em plena liberdade. O ferro gélido e brilhante das barras apenas protegia a boneca que fora quebrada, até que ela se tornasse a fada viajante das eternidades, quando, então, nenhum mortal poderia tocar-lhe.  Erguendo-se de seu desalento, perscrutou o aposento em que estava selada, trancada de um mundo inóspito e mesquinho, e focou o piano com seus olhos purpúreos. Dedilhando suas teclas bicolores em busca de sinfonias, solfejou o mais doce cântico das ninfas, vibrando em cada nota estendida, aplicando à canção os floreios de menina que sempre cultivara. Sentiu cada átomo de vida a reverberar por seus lábios, e procurou no dedo o anel que nunca desejara. Ali, sobre a pele pálida que enfeitiçava melodias serenas, nenhum ouro reluzente de jóias ou auréolas causava-lhe alergia, fustigava seus pensamentos, ou mitificava sua figura à altura de algo imaculado apenas como um ornamento poderia ser. E, sem que percebesse, seus cabelos etéreos valsaram no ar, borboleteando à celebração da fada que acabara de nascer; aquela que, debaixo da frágil porcelana, guardava um universo cheio de esperanças, sonhos e poderes...A única que podia conceber, no aço de sua vitalidade, a chave para abrir a gaiola.

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