sábado, 23 de março de 2013

A Casa Lotada


              Lotado. Está lotado aqui.
            Lotado demais, e muito pouco também. Há muito que excede e mais tanto que falta. Mal consigo mexer meus braços, e meus passos se perdem e caem sobre o chão gelado. Tento estender minha mão, mas não há ninguém para pegá-la. Quando porventura uma daquelas sombras consegue tocar-me, quando seus dedos de éter se entrelaçam nos meus, elas zombam e gritam e me envolvem com força, acalentando-me do frio invisível de suas garras, jamais puxando-me para cima ou erguendo meus olhos, jamais acordando-me com seus sussurros ensurdecedores. Mortas, elas roubam meu fôlego, tentando reviver através de meu corpo, minhas veias, minhas forças em cativeiro. Estão condenadas ao passado, mofadas e mortiças, mas permanecem presas às paredes, aos móveis, a cada batida de um coração amaldiçoado pela memória. As memórias minhas que se juntam às tuas; alguém me chama, mas eu não posso ouvir. Tu entraste como amante, mas trouxe muitas delas. E como uma médium condenada, fico a observar os fantasmas de outrora, e eles são tantos e tão reais, que lotam o meu lado vazio da tua presença.
            Os ponteiros do relógio travam e calam-se. Resta-me esta casa que divido com as aranhas, restam-me suas teias quebradiças e fatais. Houve um dia em que fui beijada, e, apesar de tantos fantasmas, não me lembro tanto dele; não me lembro do momento em que senti algo terrestre, não me lembro do momento em que estive no mundo físico. Não porque estou morta; mas não seria isto a morte? Alguém me chama, alguém me toca. Mas eu não posso sentir. Minha mente lotada de vozes sussurra os refrões de uma canção desimportante, preenchendo meus ossos vazios de mofo, apodrecendo meu corpo e minha juventude, levando-me a cantar com ela aquela melodia que não diz mais nada, mas significa tanto. E no entanto minha garganta está seca, e tu já foste embora há tempos. Criarei um fantasma para ti também, como aquele que já ocupou tua ausência. E o colocarei ao meu lado, e, por ser um fantasma, ele não terá nenhuma memória além da minha.
            Não lembro mais do mover do relógio. Há tanto tempo a poeira cobriu a cor de seus ponteiros, e uma aranha o tornou sua casa; talvez as paredes estivessem muito cheias, lotadas de tantas outras coisas esquecidas pelo mundo. Grudentas de teias, de memórias e almas, tantas almas, que não sobrou nenhum espaço para a minha. E esqueço o que tanto faltava, por mais que talvez a única coisa que não estivesse aqui fosse a singela e deslocada presença de mim mesma. 

sábado, 9 de março de 2013

Aquilo que falta


Quando eu era pequena, queria ser astronauta. O que hoje parece um sonho infantil, daqueles que não merecem fé ou atenção, faz total sentido para minha mente decididamente inapta às ciências e aos cálculos. Desde pequena, eu queria sair do planeta. Desde pequena, eu queria voar. Voar para mundos longínquos enquanto minha vista de fora enxergava à minha própria terra com uma nitidez grande demais; enquanto meu corpo planando na falta de gravidade jamais se encostava ao solo por mais que alguns segundos; enquanto todo o universo e seus mistérios pareciam um lugar mais confortável que a praticidade das coisas terrenas; enquanto eu ainda não tinha que saber de nada em definitivo.
O que quer que eu fosse buscar um dia, estaria longe. Fora da Terra. E acredito que estava certa, pois até hoje não o encontrei. Tenho a impressão de ver uma faísca, uma espécie indizível de rastro daquilo que procuro por vezes; tenho a impressão de ouvir uma nota de minha própria essência nas canções mais distantes, naqueles ofícios que exigem juventude e vocação; e pareço fita-lo turvamente entre as linhas que eu mesma escrevo, derramado sobre a página como o sangue de algo que definha, mas nunca morre. Seria mais fácil que meu quê invisível, minha missão secreta, passasse de um moribundo incômodo a um defunto resignado. Seria mil vezes mais fácil adaptar-me às engrenagens da Terra, arrumar-me num papel previsível, tomar um rumo no que chamam enfaticamente de vida, enfiar meus pés no solo como os adultos fazem, como os adultos devem fazer, e prefiro de verdade ser uma adulta. Mas há algo que falta; há algo fora de lugar. Há algo distante demais, algo que é meu. E meus pés flutuantes, levando-me a todos os cantos que posso olhar, não conseguiram me levar até ele.
Não sou uma astronauta. Sou uma escritora. Ou ao menos penso que sou, cega demais para encontrar a única coisa que interessa. Mas não há futuro nisso por aqui. Para os que parecem ter encontrado seus rumos na vida, o lado de fora não interessa. E meus pés ainda não afundam sobre o solo. 

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Doce Tolice


Tenho um pássaro azul de penas rebeldes, de voz afinada, da cor do céu da manhã mais límpida; tenho-o e tenho orgulho, pois ele me tem e somos felizes. Tenho um pássaro negro de penas brilhantes, de asas quebradas da cor da noite mais profunda; tenho-o como tenho a mim mesma, fenecendo-se no brilho de um dueto bem bobo. Tenho um pássaro azul da cor das marés, e um pássaro negro de tons abissais. Tenho a luz e o escuro e todo o mais; tenho as ondas e o céu e o amor, e não preciso de nada mais; nada além do teu calor. 

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Tempo


             Há quem diga que o futuro não existe. A cada segundo de presente, produzimos simultaneamente passado e futuro, desprezando a golfada de ar que já respiramos, expirando-a como havia de ser mais à frente, e deixando-a para trás novamente, até irmos em busca de outra e outra, numa repetição entediante que é, afinal, a própria vida. Ao pensar no conteúdo de meus pulmões, subitamente eu quase o perco; o tempo não existe até que eu o encare. E ter de lidar com suas investidas, seu olhar invisível que não pode, num relance, ser ignorado, faz com que meu peito pareça sufocado e meu pulso acelere sem motivos palpáveis. Prestes a fechar o primeiro ano de minha segunda década de vida, eu olho demais para algo que costuma ser vislumbrado, com alguma resignação mórbida, por aqueles que já contam mais do dobro de minha idade. E percebo que sempre estive enleada aos amores desta força imaterial, contemplando demais os movimentos do relógio e jamais aproveitando-os por completo; que deixei que muito de meu alento fosse perdido numa daquelas pausas silentes e profundamente perturbadoras nas quais eu olhei para a frente e o vi, movendo-se sem fim; que, encarando-o, não reparei quando perdi ele de vista; e que agora, por mais que eu ainda o veja, há muito dele que perdi.
            Acostumada a gastar horas observando sua magnitude, eu, pela primeira vez, foquei-me em um de seus membros mais difusos. A massa amorfa do futuro caiu em minhas mãos e eu a moldei, numa simplicidade surpreendente, em cenas e fatos e planos tão realistas que, por um momento, pareciam pertencer ao presente. Presa num misto de fascinação e temor, eu mexo em seus detalhes como uma criança a explorar a nova casa de bonecas. Mas meus dedos se sujam de pó, e é muito fácil fazer uma cena desmoronar, e toda a minha fundação imaginária se esvai, dissolvendo-se novamente na massa etérea que era e é. Sabendo-o frágil, o instável futuro que se ergue e despenca, eu o reconstruo, permanecendo imóvel, com a mais dolorosa consciência de que um movimento meu alterará tudo. E assim vejo-me condenada à mera contemplação do que não vai ocorrer, subjugada pelo poder do imprevisível, paralisada e com medo e frio. A massa amorfa com que pensei tecer projeções não passa de ilusão. O futuro é um breu absoluto onde meus olhos não podem enxergar.
E o tempo não existe até que eu o encare. 

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Tridimensional


                Papel. Débil e imóvel papel. Todos são apenas papel. Dissolvendo-se no ar, queimando e rompendo-se conforme o conteúdo lhes toca, pisa, amassa. Não há nada além de papel. Nada além dos traços planos que desenham rostos bidimensionais, corpos bidimensionais, seres bidimensionais. Nada além da folha esticada sobre a parede, nada além da proporção perfeita e dos floreios artísticos, nada além de rascunhos e ilustrações ilusórias, expressões simuladas, faces de mentira. Não há nada tão leve quanto o papel, e nisto há algo pesado: basta um risco profundo para que ele se rasgue, e aqui só há retalhos. Para mim só há retalhos.
                Toco a superfície com meus dedos tridimensionais, admirando sua beleza. Aqui, do lado de fora, minha forma pesada e meus ossos trêmulos são apenas solitários, estranhos, exclusos. Gostaria de ser um desenho, e de, como todos os outros, sorrir um sorriso simétrico e plano. Gostaria de tornar-me estática, incapaz de evoluir, simplória e rasa como o rascunho de um iniciante. Gostaria de ser tudo o que não sou e não posso ser, presa do lado de fora, envolta por esta carne dolorida e inchada, móvel e verdadeira.
                Só há a superfície a preencher, e que felicidade! Se estivesse oca não poderia viver, e ainda assim não posso, cheia de coisas pulsantes, vivas e mortas, cheia de dores latentes e dormências instáveis, tridimensionalidade e trevas, abismos profundos e segredos que nem eu mesma sei. Presa ao conteúdo, sonho com as mil possibilidades de uma folha em branco; mas meus dedos se cortam ao mais vacilante movimento, e meu corpo é pesado demais e apenas desmancha, rompe, dissolve-a, deixando-me só com os retalhos e o lado de fora. 

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Após o vazio



             Um dia, ela cansou do nada.
            Cansou das quatro paredes pálidas. Cansou do incômodo silêncio do quarto. Cansou do contato gélido da superfície inexoravelmente reta em que encostava as costas curvadas. Cansou do banco de gesso que colava-se à parede numa quase camuflagem branca. Cansou do vazio.
            A porta não abria. Ela tinha certeza que não era um problema ordinário; dessa vez não precisaria encontrar a chave. Alguma coisa maior do que ela, maior do que o quarto, maior do que todo aquele lugar emperrara a fechadura. Não era sua culpa. Havia alguma maneira de sair dali, mas ainda não descobrira. Até que cansou disso também. E o cansaço a fez erguer-se, esticar a coluna curvada e esfregar as longas unhas sobre a parede. Ao contrário do que imaginava, suas garras afiadas não eram tão frágeis quanto pareciam. Arrancou a tinta, depois a massa, e então sobrara apenas uma fina camada de um não-sei-o-quê translúcido num ínfimo buraco. Ela encostou a face de porcelana sobre a parede, ainda maior do que ela, ainda pálida e gélida, mas não mais inteira. Uma mancha luminosa movia-se lá fora, aquecendo-a com raios de sol que ela não via há tempos. Não conseguia divisar uma forma distinta; ainda havia aquela couraça diáfana a escondendo do exterior. Pensou em rasga-la com a unha rachada, rompendo-a na primeira pressão do dedo, convidando o vento e o orvalho, o aroma e o que mais de sensorial ela pudesse captar por aquela mísera rachadura na parede, revigorando-se antes de continuar a quebra-la. Hesitou. O calor que sentia poderia vir de um campo ensolarado ou de uma labareda. O lado de fora poderia ser seu fim ou o seu começo. Mas estava cheio. Cheio de algo bom ou ruim. E ali, entre as quatro barras de concreto barato, só havia o mais completo vazio.
            Posicionou as garras. Nem mesmo a própria roupa que usava tinha cor, e gostaria tanto de sentir os olhos arderem com o contraste. Não havia nada ali dentro. Mas ela não estava vazia. Melhor que sentisse dor a ficar dormente.
            Então sentiu algo. E nenhum pedaço da parede fora rompido, e no entanto ela tinha certeza que o vento batera sobre seus ombros. Virou-se, um misto de choque e incompreensão fazendo-a calcular mentalmente as probabilidades de vento daquela parte do cubo, da porta sempre fechada. E nada fez sentido quando ela o viu.
            Ela o vira muitas vezes trancada naquele quarto. Talvez mais do que quando gastara o tempo na antiga gaiola, recebendo visitas suas e ignorando a chave quando mais quisera libertar-se. Acabara voando sozinha para longe, mas chegara apenas ali. Não via ninguém de fato, ninguém real, físico e palpável, há muito tempo. Mas definitivamente o vira. Uma assombração persistente que fazia as paredes rangerem durante a madrugada, aparecendo vez ou outra e perturbando o seu sono, sua paz, sua imobilidade silenciosa. Nunca fora o tipo de fantasma atrevido que batia portas ou tocava suas costas no escuro. Até porque só havia uma porta, uma porta devidamente trancada no quarto. Mas ele a escancarara, e o pedaço de madeira branca parecia um mero resto vagabundo consumido por cupins, caído no canto do cubículo como uma vítima corrompida.
Ele não disse nada. Ela não soube se deveria se sentir assustada ou feliz. Ele estava diferente. Agora, ele era tão turvo quanto o que havia lá fora. O calor que sempre viera dele poderia queimá-la ou aquecê-la. Encostou-se sobre a parede, esperando que algo acontecesse, que algo começasse a fazer sentido. Ele apenas a encarava. O silêncio do qual ela cansara renovou-se em algo totalmente diferente, mais escandaloso do que milhares de buzinas, mais estrondoso do que uma tempestade de raios. Seu pássaro azul não cantava mais, mas ela o queria para si sob a mais pesada promessa de silêncio. Deslizou, prostrando-se no chão enquanto permanecia o fitando, esperando, esperando, por tanto e tanto tempo. Não precisaria mais quebrar a parede. Agora a porta que tanto tentara arrombar estava destruída, e no entanto nada daquilo parecia real, e logo acordaria igualmente presa. Mas estava presa agora também; presa nos olhos dele, presa na espera muda que a afastara do sol. E aquilo parecia doer mais do que o contato áspero das grades enferrujadas da antiga gaiola.

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Carta para a boneca da floresta




            As teias de aranha na janela não me assustam mais. O tempo se encarregou de deixa-las ali, frágeis e quebradiças, persistentes e invisíveis, discretas em sua própria magia que leva a todos os cantos. O tempo se encarregou de deixar meus ouvidos doloridos descansarem, e minhas tenras feridas são hoje apenas marcas sobre a pele desbotada, desenhos eternos enfeitando os braços que um dia se jogaram ao enlace do que era mais terno e mais ácido. O tempo me envolveu em suas bandagens pálidas, paralisando-me em meu curso acidentado, lavando meus pés ensanguentados e dissolvendo a dor em minhas lágrimas, e quantas, quantas lágrimas. O tempo afastou as ervas daninhas de meu palácio, empurrou-me para sua torre mais alta, convocou o silêncio e as aranhas e o nada para que eu tivesse companhia.
            Mas hoje a canção voltou a tocar. E diante do lúgubre som do piano eu lembrei da sua imagem.
            Pensei que dividíamos a mesma coleção de bonecas quebradas, o mesmo palácio de ternas assombrações. Mas as aranhas são as únicas aqui, caminhando sobre os pedaços de louça no chão, examinando os fragmentos minúsculos que arranharam meus pés, subindo e descendo e voltando, lépidas e constantes como são. Pensei que minha boneca favorita fosse a testemunha mais compreensiva de meus próprios pecados, que os cabelos que eu penteara com tanto empenho não fossem me abandonar em minha gaiola, jogando-se na tal floresta com a qual eu jamais havia sonhado. Comparava nossas palavras e desenhos, nossos turvos rascunhos de sonhos estranhos demais, iguais demais, nossos demais. E enxergava nos seus olhos vítreos de brinquedo novo o que eu mesma já fora um dia, e deixava que minhas asas negras a envolvessem, protegendo-a do que pudesse arranhar sua porcelana intacta.
            Mas o tempo a levou também. E eu jamais soube o porquê. Minhas correntes pesadas demais ainda não haviam sido quebradas, e meu coração ainda sofria, extraído um pedaço enorme dele, o maior dos amores e dos pecados. E logo então minha boneca quebrara-se sobre o chão, arrastando-se para os espinhos e trevas da floresta, deixando-me só e sem a canção.
            E eu jamais soube o porquê.